A tênue linha entre purismo e respeito

Sei que, com este texto, vou entrar em uma briga que talvez não seja apenas vã, mas também me traga muitos xingamentos. No entanto, não posso me furtar ao que tenho visto cada vez mais não apenas na mídia tradicional (muito menos), mas na mídia independente (blogs e podcasts, muito mais) e até na boca de tradutores e intérpretes, isso sem falar em muita gente que vem se expressando em um português um tanto alternativo. Mas acho que deveríamos, em primeiro lugar, falar um pouco de norma e variantes, pois isso vai nos dar uma noção, grosso modo e de forma bastante solta (ou seja, sem rigor teórico), do que está acontecendo e do que o futuro nos reserva. Vou comentar de forma bem resumida esses dois conceitos e deixar no fim da postagem uma pequena bibliografia sobre o assunto.

Norma, língua, registro

Segundo Eugenio Coseriu (1967), norma é o “conjunto de realizações fonéticas, morfológicas, lexicais e sintáticas produzido e adotado mediante um acordo tácito pelos membros da comunidade” (AZEREDO, 2018). Ou seja, é um combinado que os falantes da língua fazem para se compreenderem mutuamente nas situações comunicacionais apresentadas. E daí se derivam a norma culta, a língua padrão e outras normas que não discutiremos aqui. Entende-se por norma culta “a variedade de língua que indivíduos letrados utilizam na comunicação monitorada, falada e escrita”; por língua padrão “‘um modelo de uso’, de limites mais definidos, integrado por formas e construções que se recomendam como referência” (AZEREDO, 2018). Vamos tratar deste último, pois ele é mais flexível quanto à fala, mas rígido quanto ao uso escrito, pois é o que se fixa na maioria das gramáticas normativas. Ou seja, segundo a língua padrão, podemos lançar mão de diversos registros ou variações para nos expressarmos da melhor maneira e nos comunicarmos com diversos públicos.

Na tradução, o conceito de registro é muito importante, pois define muito do tom que queremos dar ao texto

O tempo todo estamos oscilando entre registros de língua, ou seja, as maneiras como nos expressamos para acessar nosso interlocutor da forma mais eficiente possível. Toda língua tem diversos registros à disposição, e parte importante da comunicação depende de sabermos utilizar essas variações de forma adequada, em uma modulação constante não apenas de palavras (vocabulário), mas também de estruturas (sintaxe). E esses registros são importantes não apenas para a língua falada, mas também para a língua escrita; ou seja, na tradução, o conceito de registro é muito importante, pois define muito do tom que queremos dar ao texto: se mais coloquial, mais formal, se pertencente a uma parcela da população ou classe social ou outra, e aí entraríamos na sociolínguística, que também não é o objetivo desse texto.

E por essas modulações todas, chegamos ao que interessa. A língua tem poder de absorção grande e também é regida, segundo algumas teorias linguísticas, pela lei do menor esforço. Ou seja, quando uma estrutura se mostra mais complexa, o uso cuida de simplificá-la para que fique mais fácil e ágil, exigindo menos esforço dos falantes. E várias vezes isso vem por meio de empréstimos de outros idiomas, readequações dentro do próprio idioma, enfim, diversos mecanismos de simplificação. E essa é a língua, um organismo vivo que muda segundo a história. Porém, isso tem seus limites no momento em que a transformação começa, e, neste momento, vejo muitas barras sendo forçadas, em geral inconscientemente, para que o português absorva estruturas que não são próprias dele, e sim da língua inglesa. E aí que eu gostaria de chegar.

Purismo?

Não me considero um purista da língua, pois não me causa incômodo empréstimos que caibam no português ou de termos ou estruturas inexistentes no português e que se expressam bem em outro idioma. O que me deixa cabreiro, às vezes até bravo, são usos de palavras estrangeiras, aportuguesamentos estranhos, estruturas, frases feitas de outro idioma no português quando temos uma opção perfeita em português. Primeiro, sou um profissional do idioma, minha ferramenta principal de trabalho é o português, e tento ao máximo zelar por ele, inclusive para que ele evolua de forma saudável e não vire um arremedo estropiado de idioma. Segundo, acho despropositado o uso indiscriminado de estruturas estranhas ao português. Quase ninguém que fala assim tem mais tempo de inglês que português como idioma, não é o idioma materno da pessoa, mas ela insiste nesse uso capenga do outro. É quase o espelho de um vira-latismo que tanto se abomina, mas que se apresenta com toda a força quando a pessoa usa esses termos.

Criamos uma tradução literal que deixa o texto desengonçado e, inclusive, podemos criar confusão entre os leitores.

Sabichão?

Não, não sei tudo, não sou o sabichão. Estudo muito, o tempo todo, tanto outros idiomas com que trabalho quanto o meu. E com isso tento aprender a usar os recursos da língua da melhor forma possível. Escorrego muitas vezes, e vejo isso quando alguém corrige meu texto, e assim aprendo o que posso, entendo quais são os limites da língua, que muitas vezes são elásticos, e o que é aceitável a quem me lê. E respeito isso. Pois respeito a língua e todas as possibilidades que ela me dá.

Sei que, muitas vezes, as pessoas acabam absorvendo esse “jeito” estranho de falar sem ter consciência de que está praticamente falando como as antigas versões do Google Translate: usando estruturas de outro idioma com palavras do nosso. Sabe quando a gente critica uma legenda na qual se traduz “It’s a piece of cake” por “Isso é um pedaço de bolo”, e não por “Isso é sopa no mel” ou “Isso é moleza”? Então, quando falamos “Precisamos falar sobre” ou “No fim do dia”, e não “Precisamos falar sobre isso/o assunto” ou “No fim das contas” ou “No frigir dos ovos”, é a mesma coisa. Criamos uma tradução literal que deixa o texto desengonçado e, inclusive, podemos criar confusão entre os leitores. Pois, para mim, “No fim do dia” significa “No fim do expediente”, quando a gente sai para o happy hour curtir com os amigos da empresa.

Happy hour?

Sim, happy hour é um ótimo empréstimo para aquela ida ao boteco no fim do dia para relaxar e deixar para trás as agruras do trabalho, por isso uso sem medo. Outro empréstimo muito bom é briefing. Não temos uma palavra que abranja o que acontece em um briefing, que, segundo o Dicionário Houaiss (o mais permissivo quanto a empréstimos estrangeiros), é: “1 Ato de dar informações e instruções concisas e objetivas sobre missão ou tarefa a ser executada; 2. p. met. o conjunto dessas informações e instruções”. Ou seja, não há nada de errado em trazer palavras estrangeiras para o português, aportuguesá-las, absorvê-las, usá-las. O que seria de abajur, batom, Blitz, Zeitgeist, capricho, bandolim, almofada, arroz se não tivéssemos absorvido essas palavras do francês, do alemão, do italiano, do árabe?

E aí eu trago outro exemplo. E se amanhã eu encontrasse uma pessoa e dissesse o seguinte: Olha, mão no coração, eu estou de nariz cheio. Está me dando até pele de ganso? E começasse a falar assim com todo mundo e que as pessoas que se virassem para me entender? Não seria legal, certo? E as pessoas me ignorariam, pois não me entenderiam. Essas são expressões que vêm do alemão (Hand aufs Herz, ich habe die Nase voll, ich kriege davon eine Gänsehaut), e a tradução daquela frase lá em cima para o português é: Olha, eu juro, estou de saco cheio/farto. Está me dando arrepios. Fica melhor assim, certo?

Mas o inglês…

Provavelmente o parágrafo anterior pode dar ensejo a uma frase como: “Mas o inglês é lingua franca, muita gente fala inglês, então não tem problema falar desse jeito”. Eu discordo, mas vamos tentar considerar essa afirmação com cuidado. O Brasil ainda tem índices de analfabetismo altos, mesmo nos grandes centros. Também tem índices de analfabetismo funcional – que acomete pessoas alfabetizadas que conseguem ler, mas têm dificuldade de compreender instruções e interpretar textos. Ou seja, se nem mesmo o português é compreendido por todos, que dirá o inglês.

Apenas quando a mudança se impuser com o uso é que saberemos no que vai dar.

Muito se absorve por meio de exposição, e acredito que seja esse o caso. Muitas pessoas têm um conhecimento médio do inglês, suficiente para compreender palavras e expressões, mas insuficiente para que essa compreensão seja de fato traduzida por algo genuinamente brasileiro. Outra possibilidade é que esse uso de estruturas estrangeiras sirvam como uma espécie de ferramenta de exclusão: quem usa a língua dessa forma está em um patamar, quem não usa é inferior ou excluído de um determinado grupo. Como o jargão, que cria uma reserva de compreensão àqueles que partilham de um vocabulário específico de uma área profissional.

Pode haver outras possibilidades, mas penso agora nessas duas como as principais que talvez levem pessoas a reproduzirem esse tipo de linguagem. E o que acho mais engraçado: esse tipo de uso está cada vez mais comum em veículos de informação alternativos, que em geral precisam de um público maior para sobreviver. E o problema, ao meu ver, é que esses veículos acabam também se tornando ferramentas de formação de opinião, levando seus consumidores a repetirem e reproduzirem tal linguagem. E aí se cria um círculo vicioso de português “meia-boca”.

Solução?

Há duas respostas a essa pergunta. Uma delas é “Não há solução”. A outra é “Tempo”.

Não há solução para a evolução da língua, haja vista vossa mercê, vosmecê, você, , vc (que, nas próximas gerações, provavelmente vai ser pronunciado vicê, risos). E isso aponta para um futuro em que o inglês se embrenhará cada vez mais no idioma até que haja outra língua tão dominante quanto ela, como foi o francês no Brasil. A invasão lexical já se mostrava como fava contada, porém a sintática chegou com o advento da internet popularizada e o acesso das pessoas a todo tipo de produção em outros idiomas (o que acho ótimo) e o consumo massificado de produtos em língua inglesa (que já não acho tão legal, pois diminui a diversidade).

O tempo – a segunda resposta à pergunta – faz com que a língua mude conforme uma infinidade de parâmetros, impactos e influências que estão totalmente fora do nosso controle. Talvez possamos fazer previsões superficiais (ou até um pouco mais profundas) quanto ao rumo que a língua vai tomar, mas apenas quando a mudança se impuser com o uso é que saberemos no que vai dar. Quanto mais houver disseminação de determinado uso da língua, ou seja, quanto mais gente fizer uso ou não de certos desvios e variações, mais a língua vai se moldar, também conforme a lei do mínimo esforço. Então, talvez o tempo nos mostre que essa linguagem estropiada é apenas um modismo, algo passageiro para pensarmos a língua com mais clareza. Ou, ao contrário, nos aponte para mudanças mais drásticas e profundas. Não há muito o que fazer, apenas esperar.

Porém, enquanto houver gente que se incomode com esse tipo de uso do idioma, haverá resistência. Até que se normalize e “normatize”. E as mudanças não acontecem em uma geração, será preciso mais tempo para que o idioma se transforme nessa profundidade.

Pequena bibliografia
  • AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. Ed. rev. amp. São Paulo: Publifolha, 2018, p. 66–72; Adquira aqui
  • BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009, p. 50–51; Adquira aqui
  • KURY, Adriano da Gama. Para falar e escrever melhor o português.2. ed. rev. Rio de Janeiro: Lexikon; Adquira aqui
  • MOURA, Chico e MOURA, Wilma. Tirando de letra: orientações simples e práticas para escrever bem. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Adquira aqui
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