Véus

Controvérsia. Se fôssemos resumir as teorias da tradução e suas diversas linhas e estudos em uma palavra, seria essa uma das primeiras numa lista na qual cabem também idealismo e política. Tradução é um negócio mais sério do que parece e hoje mesmo disse a uma grande amiga que torço (de forma jocosa) para que o Google Translate cause um incidente diplomático hecatômbico. Mas não é disso que eu quero falar nesse post.

Apesar do respeito à obra original, nossa cultura já recebe sem pedir (e isso não é uma crítica, muito pelo contrário) a influência de tantos idiomas e de tantas culturas que fica difícil dizer quando algo precisa mesmo ser explicado ou ampliado para que o leitor sinta o gosto do estrangeiro.

Quero falar da tradução como um véu. Pois ao traduzir um texto, sem dúvida pousamos um véu sobre o texto-fonte [ou original, como queiram], sendo véu o texto-alvo [a tradução]. Por exemplo, num texto em francês, eu preciso deste véu bem colocado para que eu possa conviver com a obra, me relacionar com ela. Mas as tramas desse véu variam uma barbaridade e isso faz com que a relação com a obra seja uma ou outra. E a controvérsia nas recentes teorias tradutórias tem a ver com a tessitura desse véu, pois muitas vezes ela pode ser bastante apertada e não deixar entrever o que está por trás dele, dando a sensação de que não nada por trás dele. Outras vezes a trama é frouxa e conseguimos ver perfeitamente o que está por trás, e isso traz um estranhamento que é muito bem visto por diversos teóricos. Às vezes em favor, outras em detrimento do entendimento tranquilo de um texto.

Obviamente essa segunda trama é mais bem utilizada em estudos e pesquisas sobre tradução. Porém, estranhamente, muitas traduções comerciais também têm esse dom, o de deixar entrever nas palavras o que havia antes do texto ser supostamente trabalhado. Mas podemos falar disso depois.

Esse entrave é bastante discutido quando falamos de uma cultura que já é permeada pelo gosto estrangeiro (como a nossa), que não precisa de mais uma injeção cultural alheia à sua. Pelo prisma da cultura dominante (em especial a de língua inglesa) esse ato chamado de “estrangeirização” tem defensores ferozes, como Lawrence Venuti e Antoine Berman. O respeito ao original começa no âmbito do léxico e se estende aos aspectos culturais da obra, sendo mal vista a tradução que prima pela chamada “domesticação”. Nesse sentido, qualquer inclusão ou exclusão, mudança ou explicação dentro do texto-alvo torna-se um aviltamento na visão dessa linha teórica. Preocupação bastante conveniente quando se fala do lado de “lá”.

Apesar do respeito à obra original, nossa cultura já recebe sem pedir (e isso não é uma crítica, muito pelo contrário) a influência de tantos idiomas e de tantas culturas que fica difícil dizer quando algo precisa mesmo ser explicado ou ampliado para que o leitor sinta o gosto do estrangeiro.

Do lado de cá a coisa é um pouco diferente. Apesar do respeito à obra original, nossa cultura já recebe sem pedir (e isso não é uma crítica, muito pelo contrário) a influência de tantos idiomas e de tantas culturas que fica difícil dizer quando algo precisa mesmo ser explicado ou ampliado para que o leitor sinta o gosto do estrangeiro. Já sabemos, como cultura não hegemônica, que o estrangeiro está ao alcance das mãos, ainda mais em épocas internéticas. Seguir o que a obra pede, ao meu ver, sempre é o melhor caminho e, se extremamente necessário, deixar as coisas mais claras não desrespeita ninguém, muito pelo contrário, ajuda as pessoas a compreenderem melhor o que leem. Não estou falando de adaptar, simplificar ou de subestimar o público leitor, mas há coisas que para nós ainda são tão distantes (ainda mais com as traduções literárias para o português hoje em dia, vindas diretamente de idiomas dos mais diversos possíveis) que uma mãozinha de quem conhece não é de se recusar.

Publicado originalmente no Medium.

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