Ah, mas ele não falou isso…

Estava na Alemanha, em 2009, na viagem dos meus sonhos depois de anos estudando alemão, com um grupo de outros brasileiros que foi enviado para lá por um programa para jovens adultos do Rotary Club. Fomos sob a tutela de um “team leader”, um senhor alemão que vive no Brasil desde os 15 anos. No grupo, além dele, apenas eu levava o alemão na bagagem e, por isso, em Kirchheimbolanden (nunca vou esquecer esse nome), uma das cidades que visitamos, ficou sob minha responsabilidade  —  ah, você é o tradutor  —  a interpretação durante o “tranquilo” city tour com nosso guia: um senhor muito simpático e profundo conhecedor da arquitetura medieval da região. Imaginem o nível de dificuldade da interpretação, já que não sou intérprete, não tenho treinamento para tanto e demoraria um século para tê-lo, ainda mais em alemão. Mas acho que não fiz tão feio para meus companheiros de viagem, um caso de “melhor que nada”.

Mas sempre há, e sempre haverá, aquele fulano para te tirar do sério.

E esse fulano estava esperando apenas a oportunidade perfeita para me azucrinar, pois havíamos nos desentendido poucos dias antes, em outra cidade.

Não foi isso que ele falou

Quase tudo na tradução tem um porquê, até mesmo o erro mais crasso. E isso, de modo geral, em todas as modalidades (oral, escrita, legendada, dublada ou no papel). Tradução é um processo complexo que envolve duas línguas naturais diferentes em vários níveis (do contrário, qual seria a necessidade de se traduzir?), inclusive na formação, disposição e abrangência das palavras. Uma simplificação tosca, mas é isso aí.

Moisés de chifre

E eu estava lá, ralando meu tchã na boquinha da garrafa para dar conta das abóbadas, colunatas, parapeitos, beirais, estátuas e até de um Moisés chifrudo (que, graças aos céus, estava lá no altar para eu conferir os chifres). Daí vem o sabichão e diz, no meio da balbúrdia: “Não foi isso que ele falou”. Neste caso específico, em que eu sabia ser uma provocação à toa, pois o fulano tinha um parco inglês e zero alemão, eu retruquei com um: “Então, o que ele disse?”. (Não façam isso profissionalmente, o.k.?)

Após o silêncio meio resmungado dele, continuei minha tarefa ingrata, mas não inglória.

Trocando em miúdos

Já vi muita gente dizer que tradução não precisa de teoria. Também já vi muito prático empedernido dando o braço a torcer a teóricos que explicam como funciona a tradução. Deve haver estudos mil sobre a satisfação do leigo frente a uma tradução, seja ela qual for.

Mas uma coisa posso dizer: trocando em miúdos, o leigo erra ao apontar supostos erros por não conhecer os meandros da tradução. Técnicas e expedientes que usamos para chegar a um texto que transmita uma mensagem de forma natural, que não seja uma “tapeçaria ao avesso”, como disse Cervantes, mas sim uma obra tão bem cerzida que nos passa a impressão de ter sido escrita originalmente em português. Na minha opinião, é aí a verdadeira morada da fidelidade, tão reclamada por quem pouco entende de tradução e, infelizmente, por muitos que alegam conhecê-la.

Mas também há os acertos mais que acertados dos leigos e eles devem ser considerados. Mas isso é assunto para outro texto.

Você pode ler um pouco sobre o KiBo e os Moisés chifrudo aqui (em inglês). Esse texto foi originalmente escrito na plataforma Medium.

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