Na reta final de um dos maiores eventos dos livros no Brasil, durante a Bienal do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, prefeito do Rio de Janeiro, ordenou o recolhimento de um quadrinho da Marvel, Vingadores: A cruzada das crianças, de Allain Heinberg e Jim Cheung (de 2010), sob a alegação de que havia conteúdo sexual para menores. A cena que ele diz sexual é um beijo romântico entre o Wiccano e Hulkling, dois adolescentes heróis da trama. Apesar de abertamente namorados, levaram quase oito anos para que um beijo dos dois fosse retratado nas páginas. Uma batalha que a Marvel resolveu encarar para aumentar a diversidade em seus quadrinhos.
Depois de um cabo-de-guerra entre a Bienal e o prefeito, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, derrubou a decisão do presidente do Tribunal de Justiça, Claudio de Mello Tavares. O mesmo juiz, em outra decisão, determinou textualmente que “não se pode negar aos cidadãos heterossexuais o direito de, com base em sua fé religiosa ou em outros princípios éticos e morais, entenderem que a homossexualidade é um desvio de comportamento, devendo ser reprimida, não divulgada ou apoiada pela sociedade”. Antes, o desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes já havia acolhido favoravelmente o pedido do Sindicado Nacional de Editores de Livros (SNEL), que solicitava a suspensão da ação de recolhimento e censura dos livros na Bienal. No meio dessa briga judicial, o influenciador digital Felipe Neto comprou 14 mil livros com temática LGBTQI+ e mandou distribuir, embalados em plástico preto e um adesivo com os dizeres “Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”. Houve comemoração por parte do mercado editorial e de todos aqueles que amam os livros.
No entanto, não devemos baixar a guarda.
Pouco antes de Hitler subir ao poder, houve a Grande Queima de Livros (Bücherverbrennung) de 1933. Cerca de três mil títulos entraram na lista dos “indesejáveis” e não alemães (undeutsch) para o Reich, entre eles os livros de Kafka e Bambi, de Felix Salten (Siegfried Salzmann). Foram aproximadamente 20 mil volumes queimados entre 10 de maio e 21 de junho. Os autores que entraram para a tal lista eram em sua maioria judeus, mas também todos que criticavam a truculência do regime.
Agora, tentam proibir a veiculação de livros em nome de uma suposta “proteção das crianças e adolescentes”. Porém, qualquer avaliação rápida do título que deu origem à celeuma indica para dois fatos: 1. o beijo entre dois adolescentes do sexo masculino não constitui conteúdo sexual ou situação imprópria; 2. no momento em que uma pessoa vê como conteúdo sexual impróprio o beijo entre dois adolescentes, fazendo com que adolescentes que estão em período de descoberta sintam que estão pecando ou fazendo algo errado, no fim das contas, incorreu em homofobia.
E hoje a homofobia é crime.
A reação contra a decisão do prefeito – e contra a ação truculenta dos agentes da “ordem” – foi imediata: o quadrinho condenado esgotou imediatamente, os jovens se juntaram em diversos atos contra a homofobia e a violência durante a Bienal, os editores engrossaram o coro. Muitos não se manifestaram, o que causou certo estranhamento, mas a maioria das editoras lançou imediatamente notas de repúdio à ordem de Crivella e em favor da diversidade e da igualdade. Apesar das reiteradas tentativas dos agente da “ordem” de recolher os livros, o tiro saiu pela culatra. Inclusive, diversos meios da imprensa começaram a cobrar o prefeito por diversos problemas pelos quais passa a cidade do Rio de Janeiro, exigindo que resolvesse o que havia de urgente na cidade em vez de se meter onde não era chamado.
São essas ações que dão esperança a quem está na luta contra todo tipo de preconceito. Que possamos enfrentar de cabeça erguida e com muita força à onda retrógrada que tenta invadir o Brasil.
Não à homofobia! Não à censura! E um viva a todos que estiveram na Bienal do Rio e lutaram contra mais esse descalabro!
Fontes:
https://www.dw.com/pt-br/1933-grande-queima-de-livros-pelos-nazistas/a-834005
https://epoca.globo.com/o-beijo-de-wiccano-hulkling-historia-da-marvel-que-irritou-crivella-23931319
https://www.cartacapital.com.br/tag/claudio-de-mello-tavares/