Saudosa maloca

Eu tinha, sei lá, 10 anos quando ouvi de verdade Saudosa maloca, do querido Adoniran Barbosa. Estava na 4ª série, e a professora Luzia botou a fita no toca-fitas que ela sempre carregava para as aulas e soltou o som. Nós nos olhamos e ouvimos, era a primeira aula que ela ligava o rádio na nossa sala, então ficamos olhando. Enquanto isso, ela distribuiu as folhas com a letra da música, com todos os erros e imperfeições gramaticais e toda a profundidade que carrega.

Luzia foi uma das grandes professoras que tive na escola. Era do tipo revolucionária, que queria fazer a gente pensar a qualquer custo. Num tempo em que escola pública era bacana, tinha greve mas era bacana, a merenda não era lá essas coisas, mas era bacana. E a gente entrava na faculdade tranquilo depois de sair do colegial em escola estadual. Já tinha Nike, já tinha Walkman. E tinha a Luzia, que mandava a gente esquecer de tudo e ouvir a música, pois Saudosa maloca era uma obra prima, mas era difícil enxergá-la assim por vários motivos.

Um deles porque falava de pobreza. E ninguém gosta muito de pobreza.

Luzia era uma nordestina que tinha olhos verdes imensos e um cabelo encaracoladinho. Quando Carolina, amiga tradutora, me disse um dia que estava com a música na cabeça e ouvindo a canção, a imagem da professora da 4ª série me veio como uma miragem. A pele morena e marcada pelos anos, o sorriso fácil e acolhedor, as mãos ágeis que lidavam com papel, giz e apagador. Tinha uma voz forte e rouca de fumante, mas que soava sempre carinhosa, mesmo dando bronca. Tinha uma grande amiga que também era professora na escola… mas dessa eu esqueci o nome. Não foi minha professora, mas parecia legal também.

Mas não mais legal que Luzia.

Deus dá o frio conforme o cobertor é tão sábio, eu disse hoje para Carolina. Mas tenho a impressão de que ouvi isso da boca de Luzia. Não sei quanto aos meus colegas, mas ela fez com que essa música se tornasse um marco nas minhas lembranças, de um tempo que as coisas eram difíceis para todo mundo, mas todos se ajudavam. Quando contei para minha mãe sobre a música, ela riu e cantou comigo. Tínhamos que fazer um exercício sobre a música: assinalar os trechos que mais tínhamos gostado. Sempre quando lembro da música, me vem à cabeça “Mato Grosso quis gritá/Mas por cima eu falei/Os home tão cá razão/Nós arranja outro lugar”. Sei lá por que, mas essa parte é a que me vem mais rápido, e talvez eu tenha assinalado esse trechinho quando criança. Talvez porque transmitisse um jeito de superar as dificuldades, olhar para frente e seguir. Ou talvez porque fosse sonora, não sei.

Penso em tudo que todo mundo passou, em tudo que a gente ainda passa e vai passar. E se a gente fizer as contas direitinho e der ouvidos ao Adoniran, vai perceber que essa música diz mais sobre a vida de cada um de nós do que queremos admitir. E quando lembro de Luzia, que pelo que eu saiba já não está por essas bandas terrenas, penso que ela deve estar lá do outro lado, cantarolando “Din-din-donde nóis passemo dias feliz de nossa vida”…

Recadinho do coração

Originalmente publicado no Medium.

5 comentários Saudosa maloca

  1. Marília 4 de novembro de 2019 @ 09:12

    Muito bonito, Petê. Obrigada por compartilhar.

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  2. Bruna Lopes Graça Perez 13 de novembro de 2019 @ 14:17

    Lindo texto, Petê.
    Me emocionei ao lembrar também da época da escola pública imperfeita, mas maravilhosa, da música de Adoniran e dos professores que lutavam e ainda lutam pra fazer a molecada pensar.

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      1. Ana Cristina Kashiwagi 15 de novembro de 2019 @ 21:24

        Hoje, durante o café da manhã, comentávamos sobre esta música, a interpretação da Elis, etc. Sincronicidades!

        Reply

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