A negritude na literatura de nicho

A luta contra os preconceitos é constante e tem muitas frentes que se mobilizam para que aqueles sejam cada vez menos relevantes em todas as esferas. Não dá para dizer que somos livres de preconceitos, pois em geral sua raiz está naquilo que não conhecemos direito e, como não conhecemos tudo, é de se esperar que haja reservas – até mesmo preconceituosas – quanto a isso ou aquilo. O que costumamos chamar de preconceito, no entanto, vai além disso; é a consolidação de uma ideia deturpada do outro que faz com que ele nos seja repulsivo, que tenhamos raiva, por vezes inexplicável, e em geral voltada a um grupo específico. A melhor maneira de combatê-lo é normalizar aquilo que os preconceituosos demonizam, esclarecer o que os preconceituosos obscurecem, tranquilizar quando os preconceituosos tumultuam.

A luta contra os preconceitos também costuma vir em ondas. E as suas muitas frentes reagem a essas ondas de forma a espalhar a mensagem da tranquilidade, da normalidade, que os preconceituosos tentam combater, mas, muitas vezes, acabam vencidos. Ou ao menos diminuídos em seu número e em seu poder aniquilador. E uma dessas frentes é a literatura. A literatura, deixando de lado o caráter de “inutilidade” da obra de arte que Oscar Wilde pontuava, também tem um papel de espelhar a sociedade na qual ela foi criada e, muitas vezes, diagnosticar rumos, antecipar tendências ou ao menos situar o que está em pauta. 

Os jovens e os livros

Hoje em dia, uma das maneiras de se alcançar a juventude, por exemplo, é por meio da literatura voltada para ela; e temos como comprovar isso em números, não é uma alegação vazia: no Retratos da Leitura 2016, dentro das populações leitoras, os jovens a partir de 11 anos são os que mais leem por gosto. As últimas Bienais do Livro demonstraram como o poder de compra de livros hoje está nas mãos das crianças, adolescentes e jovens adultos. E esse é um período cheio de incertezas, medos, questões que podem ser – e estão cada vez mais sendo – esclarecidas e respondidas pela literatura.

Por mais que uma elite intelectual despreze o poder que tem a literatura junto a esses jovens leitores, ele existe e está criando seres humanos mais fortalecidos para enfrentar as agruras do mundo. Os livros como objetos colecionáves também movimentam essa indústria, e o setor se vê impelido ao investimento em belas capas e eventos voltados ao jovem. Muitas editoras já entenderam essa realidade e se esforçam para atrair esse público. Que é bastante exigente, não se enganem.

A onda negra

E como comentei antes, as ondas da luta contra o preconceito chegam e atacam um ou alguns problemas, com mais ou menos sucesso. E depois de uma onda de livros com a temática gay e com temática feminista, chegou a hora e a vez dos livros escritos por negros, com protagonistas negros, histórias com as agruras e as felicidades da negritude, o que no Brasil é de uma importância crucial. Somos uma população de maioria negra, mesmo que ela não se reconheça como tal. E a maioria dos livros, até o momento, não tratava de forma profunda – ou mesmo neste lugar de voz – das questões que envolvem a negritude.

Essa é uma mudança muito bem-vinda, mas ainda se concentra nas obras traduzidas quando se trata de ficção especulativa ou científica, um nicho que atrai os leitores mais jovens. Temos muitos exemplos que já figuram nas listas de mais vendidos, como Kindred – Laços de sangue, da rainha Octavia Butler, que chegou tardiamente ao Brasil e do qual já falei aqui. Outros livros da Butler já foram publicados pela editora Morro Branco, como a duologia Sementes da Terra (A parábola do semeador e A parábola dos talentos) e Despertar. Os três primeiros traduzidos por Carolina Caires Coelho, e o último por Heci Regina Candiani.

Também temos dois livros da trilogia Terra Partida, de N. K. Jemesin, publicados pela mesma Morro Branco (A quinta estação e Os portões do Obelisco), traduzidos por Aline Storto Pereira. Nnedi Okorafor também já chegou por terras brasileiras com Quem teme a morte, da Geração Editorial (traduzida por Fábio Fernandes) e Bruxa Akata, traduzida por João Sette-Câmara para a Galera Record. Desta ainda estamos no aguardo da publicação de Binti, sua série mais famosa. E eu não poderia deixar de mencionar Tomi Adeyemi, com Filhos de sangue e osso, primeiro livro da Trilogia Orïsha, que tive o prazer de traduzir para a Rocco Fantástica (e também falei dele aqui).

Porém, temos alguns livros nacionais para jovens leitores que também se encaixam nesse local da ficção afrocentrada ou que trata de temas da africanidade. A Lu Ain-Zaila, por exemplo, tem uma duologia chamada Brasil 2048 (com os livros (In)verdades e (R)evolução) e também o livro de contos Sankofia; os livros da Lu são independentes. O Fábio Kabral, sempre mencionado quando se trata de afrofuturismo brasileiro, tem lançados Ritos de Passagem, pela Editora Giostri, O caçador cibernético da Rua 13, pela Malê, e participa da coletânea 2084: Mundos Cyberpunks. Kabral está trabalhando em um novo livro, que deve sair em breve. Há outros livros que tratam da temática negra, mas em geral são para os mais novos ou são de não ficção. Precisamos de um reforço para o time de escritores negros brasileiros que apele mais para o público jovem adulto, pois de livros adultos e infantis já temos uma certa representatividade, ainda que pequena.

Espero que essa onda não seja passageira. Que possamos ainda ver o lançamento de muitas autoras e muitos autores negros no Brasil que dialoguem com o público infantojuvenil e jovem adulto, que tragam questões que sejam mais próximas desse público. Temos mitologias e visões de mundo nacionais, por exemplo, que são fantásticas e deveriam ser exploradas sem a muleta das literaturas eurocentradas e inspiradas em Hollywood. Temos muitos autores estrangeiros que desenvolvem trabalhos que se inspiram em África e na diáspora africana, e essas traduções são mais que bem-vindas, pois ajudam a abrir espaço para que os autores nacionais também assumam posicionamentos e desenvolvam seu trabalho genuinamente brasileiro. Pelo que se vê, o público mais jovem recebe bem e está ansioso para ver a literatura voltada para ele por outros ângulos.

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