Questão de gênero na tradução: abordagens práticas na linguagem inclusiva

Diferente do português, o inglês é uma língua em que facilmente se pode englobar os gêneros durante a escrita. Já existem algumas permissões de uso do plural para que os textos fiquem mais inclusivos, então eles usam They/them/their para poder incluir masculino, feminino e pessoas gender-fluid ou que não se identificam com nenhum dos gêneros. Já em português, temos alguma dificuldade nessas definições de gênero, mas não existe uma impossibilidade. Tudo depende da criatividade na hora de se traduzir um texto.

A regra para o português é clara: se não há definição de gênero, usa-se o masculino para englobar os dois. No caso da pluralização, se há um elemento masculino, vai tudo para o masculino. Não vamos entrar aqui no mérito machista e patriarcal dessas regras, pois meu intuito aqui é alertar quem traduz sobre possibilidades gramaticalmente corretas e sem uso de esquemas artificiais (como @, x, -e) para usar uma linguagem inclusiva nas traduções. Na minha opinião, não existe linguagem “neutra”, pois linguagem é ferramenta de comunicação, e toda comunicação carrega consigo cargas diversas de preconceito, diversidade, opinião política e outros. Prefiro usar linguagem inclusiva, pois não vira uma tentativa, às vezes canhestra, de englobar todo mundo.

Edição:

Juno, do site do Partido Pirata, fez um texto bastante esclarecedor sobre o uso de “x” e “@” para se formar a linguagem neutra que pode ser acessado aqui. São boas dicas para quem quer escrever de forma mais inclusiva sem ter que fazer malabarismos morfológicos para abraçar todo mundo.* E a Ana Freitas fez uma ótima matéria para o Nexo Jornal, trazendo prós e contras do uso da linguagem neutra (ou não binária). Pode ser acessado aqui.

E na tradução?

No caso da tradução, principalmente de não ficção, eu costumo tomar antes uma precaução: avisar o editor da minha postura inclusiva diante do texto. Acho importante que tomemos essa precaução, pois o percurso para se fazer essa alteração no texto pode não parecer muito comum para quem vai editar o texto e para outras fases do processo editorial (preparação/copidesque, revisões). Há que se usar algumas mudanças estruturais no texto e, quando se trata de texto alheio, todo cuidado é pouco.

Em segundo lugar, como homem cisgênero, procuro pensar em como eu gostaria que me abordassem em uma obra que está falando diretamente comigo se eu fosse mulher (cis ou trans) ou mesmo não-binário. Eu gostaria que me incluíssem na conversa da forma mais suave possível, sem apontar aqui e ali que o texto está sendo inclusivo, pois, vamos combinar, não faz mais que a obrigação de quem escreve. E, na maioria das vezes, pelo costume e pela regra, eu acabo seguindo a boiada e usando o masculino para tudo. E, na revisão, saio mudando tudo para o que chamo de linguagem inclusiva. E não é difícil, como vocês verão agora.

A linguagem inclusiva ou “Como não pensei nisso antes?”

Antes de mais nada, quero dizer que não descobri o ouro, a fórmula mágica da diversidade, mas apenas refleti um pouco sobre a questão e cheguei a estratégias de enfrentamento do texto que antes não me eram comuns. Não exige tanto esforço assim, apenas um pouco de treino e imaginação para alterar o texto de leve. Vou dar alguns exemplos aqui que não são extensivos, apenas ilustrativos. Vamos lá.

Adjetivos

If you are excited for doing this, don’t let anyone stop you. Be proactive.

Tradução normal: Se você estiver empolgado para fazer isso, não deixe que ninguém o impeça. Seja proativo.

Tradução inclusiva: Se você sentir empolgação para fazer isso, não deixe que ninguém impeça. Exerça a proatividade.

Em geral, os adjetivos podem ser trocados por locução composta por verbo + substantivo. E naturalizamos a linguagem excluindo o objeto da segunda frase. Caso seu editor não concorde com essa inclusão, pode usar “você” ou “te” no lugar do objeto.

All, everyone

Everyone can do it. All of you can do it.

Tradução normal: Todo mundo pode fazer isso. Todos vocês podem fazer isso.

Tradução inclusiva: Todo mundo pode fazer isso. Todas as pessoas podem fazer isso, inclusive vocês.

Aqui há um aumento do texto, porém torna a frase mais inclusiva. Nem sempre teremos ferramentas suficientes para cumprir nosso papel da maneira mais simples, mas é uma tentativa a cada trecho. E não custa tentar.

Dear participants

Este é um caso em que, infelizmente, não temos muito o que fazer a não ser usar os dois adjetivos separadamente. Ao menos não encontrei uma maneira de driblar esse problema. Via de regra, eu coloco o feminino antes do masculino: Prezadas participantes, prezados participantes

A dificuldade dos artigos

É natural no português incluir artigos no início das frases, como não acontece no inglês. Em geral, com profissões que não têm gênero definido, eu acabo eliminando o artigo. Às vezes fica um pouco artificial, mas ao menos eu não corro o risco de excluir ninguém que esteja lendo. Por exemplo:

Journalists come here to discuss this important matter.

Tradução normal: Os jornalistas vêm até aqui discutir esta importante questão.

Tradução inclusiva: Jornalistas vêm até aqui discutir esta importante questão.

Sinônimos

Use e abuse de sinônimos que sejam mais neutros ou que tragam a ideia de classe quando se trata de plural. Para tanto, deixo uma dica de material: Dicionário analógico da língua portuguesa: ideias afins e thesaurus, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (Lexikon). (Escrevi sobre ele aqui.) É um livro que, no início, parece difícil de manusear, mas depois ele fica fácil de compreender e vira um material indispensável para quem gosta de escrever. Para adquirir, é só clicar no link acima. Vamos ver exemplos:

Black people suffer prejudice all the time.

Tradução normal: Os negros sofrem preconceito o tempo todo.

Tradução inclusiva: A população negra sofre preconceito o tempo todo.

É só isso?

Sim, é só isso. É um esforço pequeno com efeitos grandes. Penso que, para a maioria da população e para grande parte do “leitorado”, esse esforço passará despercebido. No entanto, para as partes atingidas, é sempre um alento ver um texto inclusivo. Há de chegar o dia em que esse tipo de estratégia será comum e normal para falantes da língua, e nesse dia textos como este aqui serão desnecessários. Mas, por enquanto, vamos nos esforçar um pouco para abraçar o maior número possível de pessoas em nossos textos.

Sempre vale a pena.

* Fica aqui meu obrigado aqui à tradutora Hailey Kaas, por me trazer algumas luzes sobre o assunto.

Leave A Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *