Miriam Leitão e o ovo da serpente

Na semana passada, houve um burburinho nas redes sociais sobre a Feira de Livros de Jaraguá do Sul (Santa Catarina). A organização da Feira decidiu desconvidar a jornalista Miriam Leitão e seu marido, o sociólogo Sérgio Abranches, após protestos e um abaixo-assinado que tiveram como base o “posicionamento ideológico” da jornalista, vista como contrária o atual presidente do Brasil, que teve votação mais que expressiva na cidade (83%). Portanto, para a sociedade jaraguaense, Miriam Leitão entrou para a lista dos comunistas de última hora.

Nessa lista estão também a revista liberal The Economist, o jornal The New York Times, um dos grandes algozes do PT, Reinaldo Azevedo, a Alemanha (sim, o país todo), Geraldo Alckmin, Bill Clinton, Fernando Henrique Cardoso (seu passado o condena) e até o vice-presidente, o General Mourão. A revolta dos eleitores do atual presidente contra quem critica o presidente gerou piadas – como esta comunidade do Facebook.

Não é preciso prestar tanta atenção assim para saber o quanto isso está fora de qualquer realidade aceitável, mas o Brasil se tornou a terra das fakenews, da pós-verdade e de todos esses eufemismos para mentira e loucura. Qualquer tentativa de compreender o Brasil desde 2018 fracassa a cada semana, quase a cada dia, quando mais uma bizarrice acontece e uma horda de eleitores do “mito” se manifesta, saindo na defesa do indefensável.

Pode parecer exagero, mas muitas ditaduras começam desse jeito, com um esforço para arrastar a população à ignorância e a uma unicidade de ideias. A democracia sobrevive apenas quando há essa pluralidade.

Literatura é política

A jornalista e o sociólogo, muito decepcionados com a notícia, já deram algumas declarações oficiais. Aqui é possível ouvir a nota enviada pela jornalista e seu marido ao jornal NSC. Porém, o velho ditado popular se mostra mais certo do que nunca: Quem planta vento, colhe tempestade.

O episódio é lamentável em muitos níveis, mas o que gostaria de abordar aqui é a questão da censura (ou autocensura) e do repúdio não a um viés ideológico, mas sim à pluralidade das ideias. Me causa mais que espécie, me traz um tanto de medo esse tipo de postura em um evento dedicado à literatura, área na qual a diversidade é um dos grandes pilares. Não há literatura isenta, imparcial, ainda que não esteja tratando de política em si. A sobrevivência dos escritores no Brasil é um grande ato político, a escrita em si, mesmo que motivada por razões das mais fúteis, é um ato político, ler é um ato político. E censurar quem quer que seja para um evento que também celebra a diversidade é um contrassenso temeroso.

O revés e os reveses

Sim, os petistas foram agressivos com a jornalista, e ela foi várias vezes hostilizada durante voos ou em eventos, e isso está errado também. Acredito, de verdade, que não é assim que a banda toca, que a conversa sempre é mais bem-vinda que a agressão, por mais que a gente veja e saiba o quanto uma pessoa está ajudando a prejudicar o partido predileto (ou talvez o futuro). Porém, que eu saiba, não houve ameaça de morte. Não houve pedido para que Miriam não fosse aqui ou acolá, não houve insegurança por parte de organizadores de levá-la a eventos. A própria feira se manifestou, dizendo que “nesses 12 anos, já enfrentou inúmeras dificuldades, da escassez de recursos financeiros até enchentes. Mas nunca, em toda sua história, foi atacada pela escolha de seus convidados”. Estamos lidando com uma corja perigosa, apoiada pelo presidente da República, e isso devia causar uma reação forte da sociedade como um todo. Mas não causa. E a serpente vai assim chocando mais ovos.

É preciso pôr limites na postura do governo, pois o governo é para todos e tem que ser para todos.

O ovo

Não vou entrar no mérito de quanto a jornalista ajudou a chocar o ovo dessa serpente que vem se esgueirando entre nós. Em nenhum caso (mesmo no dela, que, de certa, forma alimentou muito bem essa serpente), a intolerância e a censura são posturas aceitáveis. A ignorância virou a moeda que mais circula por aí, e a falta de espírito crítico grassa nessas paragens.

O desmonte executado na área educacional (com mais um escândalo, o veto do presidente ao vestibular específico para pessoas trans e outras no sistema federal, que são as que pouco tem acesso ao sistema educacional) ajuda a demonstrar que, nos próximos anos, viveremos um período de obscurantismo quando o assunto for cultura, educação e pluralidade. Pode parecer exagero, mas muitas ditaduras começam desse jeito, com um esforço para arrastar a população à ignorância e a uma unicidade de ideias. A democracia sobrevive apenas quando há essa pluralidade.

A semana do presidente

E o presidente vai contra a pluralidade com todas as forças. Ainda na semana passada ele conseguiu desagradar gringos e baianos. A Petrobras está se negando a fornecer combustível a um cargueiro iraniano, país que nos traz em média 1,8 bilhões de reais em divisas, com medo de entrar na lista de embargo dos Estados Unidos. Também está tentando conseguir a embaixada dos EUA, a mais importante embaixada estratégica do mundo, ao seu filho, e declarou, em alto e bom som, que quer “conseguir o filé mignon” para o rebento.

Depois da confusão da Feira do Livro, disse que Miriam Leitão mente ao dizer que sofreu tortura na ditadura em um café da manhã com jornalistas estrangeiros. Ele põe em dúvida as agruras pelas quais a jornalista passou. No mesmo café da manhã ele disse que “não há fome no Brasil”, sendo que o Brasil voltou a ficar abaixo da linha da miséria; e os jornais já correram para desmenti-lo. E para terminar abriu fogo contra os governadores nordestinos, que chamou de “paraíbas” em um tom pejorativo e disse que pior deles era o do Maranhão, Flávio Dino, que é um nome que cresce a olhos vistos para o pleito presidencial de 2022.

Kennedy bate duro
Este é o livro que Kennedy comenta em sua fala. Link para o livro na Amazon: https://amzn.to/2Ygenq4

O jornalista Kennedy Alencar aborda de forma contundente a questão da Feira do Livro, aliando esse incidente ao fim da democracia em uma conversa na CBN com Evelin Argenta e Roberto Nonato. Ele pontua acertadamente que o presidente acirra os ânimos, estimula os ataques a jornalistas, à cultura e à educação. “Não podemos normalizar esses absurdos”, é o que ele repete algumas vezes. Kennedy é muito duro, mas ainda assim, com todos os descalabros que passamos durante a semana, foi pouco. A fala de Kennedy pode ser ouvida ao fim deste texto. (Ou aqui.)

A democracia em risco todo dia

Parte da sociedade de Jaraguá do Sul não foi a única a se manifestar de forma violenta contra a democracia.

A Flip também sofreu ataques de moradores quando Glenn Greenwald, jornalista-chefe do site Intercept, que abriu a caixa de Pandora chamada #VazaJato, também enfrentou protestos na bela Paraty, que sempre me pareceu tão livre, tão progressista, mas no fim das contas provou ter muitos habitantes contrários à liberdade de expressão (com direito a fogos para abafar a fala do jornalista, hino nacional, gritos em megafone, ou seja, verdadeira balbúrdia). Tem matéria sobre o incidente aqui.

Daqui surgem algumas questões: quantos autores mais serão desconvidados de feiras e eventos? Quantos ficarão marcados por seu posicionamento frente ao descalabro que se vê todos os dias no Brasil de 2019? Quando a falta de informação tomará conta de uma maioria de tal forma que qualquer um com uma ideia que desvie da “nova ordem” será tachado de “comunista” sem que as pessoas saibam o que significa comunismo? É de uma tristeza sem tamanho esse tipo de postura, ainda mais vinda de um evento dedicado à literatura. E esse tipo de postura pede posicionamento firme das categorias de classe (como as notas da SNEL e da CBL que estão aqui) e também dos próprios autores convidados.

Toda a solidariedade ao curador do evento, Carlos Henrique Schroeder, que precisou passar por essa saia-justa em prol da segurança dos (des)convidados. Que possamos olhar adiante e encontrar saídas à esse arremedo de Idade Média que estamos vivendo.

‘Normalizar absurdos é como as democracias morrem’: comentário de Kennedy Alencar à Rádio CBN.

1 comentário Miriam Leitão e o ovo da serpente

  1. Lui Fagundes 22 de julho de 2019 @ 18:03

    Surpreendeu-me a atitude da Feira do Livro de Jaraguá (o amigo “Xireda” que me desculpe). Se a área do livro não defende a literatura, quem defenderá? A partir de agora os fascistas farão a pauta da cultura? A Feira de Jaraguá perdeu uma grande oportunidade de mostrar ao país que a cultura é maior do que isso (Bozo e seus fascistoides)…

    Reply

Leave A Comment

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *