Querida konbini: o grotesco na realidade

Irasshaimasê!

Já li algumas autoras japonesas, e sua literatura muito me impressiona. Em geral são textos que trazem uma crueza muito forte por baixo de uma multiplicidade de imagens doces, quase pueris, como o caso de Tsugumi, de Banana Yoshimoto (trad. Lica Hashimoto – Estação Liberdade). Sayaka Murata chegou para tirar um pouco dessa impressão, arrancando de uma vez as imagens doces, deixando apenas a aparente leveza asséptica que constitui o imaginário do Japão moderno que muitos ocidentais temos, e aquela crueza contundente misturada a elementos grotescos. Essa combinação causa muito estranhamento, o que torna Querida konbini (trad. Rita Kohl – Estação Liberdade) uma leitura marcante.

Acompanhamos nesse livro a história de Keiko Furukura, funcionária de uma konbini, as famosas lojas de conveniência japonesas, onde as pessoas podem resolver a vida quase toda, desde comprar um lanche rápido até mesmo fazer envios de mercadorias para outros pontos do Japão. Ela sempre foi uma menina rara, que não entende como as convenções sociais funcionam, o que bem explica o “episódio do passarinho”, que dá uma amostra do elemento grotesco no livro já de início. Keiko tem uma irmã mais nova que a ama muito, e por isso, durante a infância e a adolescência das duas, “protege” Keiko do mundo que ela não compreende.

Durante a escola, Furukura se isola ao máximo, mesmo participando de todas as atividades e tendo uma relação aparentemente normal com colegas. Então, as meninas crescem. A irmã de Keiko encaixa-se na engrenagem social à perfeição como mais uma peça. E Keiko – que sempre busca instruções precisas para agir, instruções essas que, por sua lógica, muitas vezes contrariam as convenções sociais – encontra um lugar onde essas instruções realmente existem: a konbini.

Com uma naturalidade nada convencional, Keiko aponta o dedo para problemas prementes do Japão atual

Visão distorcida ou a realidade sem filtros?

O que mais causa impacto nessa crítica-sátira social ao Japão moderno é que o livro é narrado pela própria Furukura, e assim temos sua visão de mundo. Aos nossos olhos, uma visão distorcida da realidade, nós, que também nos encaixamos de um modo ou outro nas convenções sociais como pequenas engrenagens de um todo gigantesco.

Assim, com uma naturalidade nada convencional, Keiko aponta o dedo para problemas prementes do Japão atual: a nação envelhecida, os homens-verdes ou homens herbívoros (jovens que perderam a capacidade de se interessar sexual ou romanticamente por quem quer que seja, o que tem como resultado uma menor taxa de natalidade e o aumento da percepção do envelhecimento), o casamento como uma das obrigações a serem cumpridas dentro da sociedade, a automatização das relações e os hikikomori, pessoas que se isolam totalmente do convívio social.

Aqui, a konbini entra como uma espécie de templo da organização, da sociedade ideal, onde todos se alimentam, se encontram e comungam diante do altar-caixa registradora, entregando seu dízimo, o pagamento pelas mercadorias, em troca de um respiro no bate-estaca cotidiano.

“Sempre igual esta konbini”, diz a velha senhora que visita o estabelecimento várias vezes por semana. Igual a Furukura, que já trabalha há 18 anos no mesmo lugar como “funcionária por hora”. Para os colegas de trabalho ela é um gentil mistério, uma moça com problemas de saúde que não pode arranjar um emprego fixo, para os familiares uma inválida social. Até que surge Shihara, um colega de trabalho totalmente inapto socialmente, mas o contraponto direto de Furukura: ele, de certa forma, se rebela contra as imposições sociais, e se mostra furioso com o que se espera sempre do homem, o mesmo que se esperava no período Jomon, a primeira civilização japonesa: que ele seja o provedor e tenha mulher, filhos, um lar constituído.

Porém, essa rebeldia esconde na verdade um homem fraco, misógino e sociopata, alguém que não consegue se enxergar dentro de parâmetros sociais minimamente aceitáveis para os “normais”, como chama Furukura quem se encaixa nas convenções. E, pela primeira vez, Furukura pensa ter encontrado a tampa de sua estranha panela, uma maneira de se livrar das cobranças sociais que ela tanto abomina.

Uma sátira que preocupa

Querida konbini é uma sátira à nossa sociedade, revestida com uma película muito fina de comedimento. Cutuca os problemas de gênero de forma contundente – nas cenas em que Keiko se encontra com as amigas casadas ou ansiosas por casar –, o problema da mecanização das relações, do automatismo como se trata o outro nas grandes cidades, do empobrecimento cultural geral da população, da fingida normalidade que introjetamos para sermos aceitos como mais uma engrenagem. E da solidão desse mundo.

Apenas na konbini, Keiko encontra os manuais de instrução que possibilitam a tal normalidade e assim começa a rotular as pessoas: o Funcionário, o Gerente, o Cliente. Essa tríade estabelece uma área de segurança onde Furukura consegue circular livremente, pois ali ela sabe exatamente qual é seu papel e o dos outros atores, não precisa entrar em jogos de poder e conquista, em jogos de dominação e sujeição, esses que aprendemos desde muito cedo para sobreviver. Para Keiko, a konbini é realmente um templo. A konbini é sua religião. Seu amor.

Uma leitura que traz, como comentei no início, a limpeza e organização japonesas, mas as camadas por baixo dessa película são densas e tem um toque bem pesado de grotesco que vai agradar até os paladares mais sensíveis. A deterioração inevitável dessas condições assépticas é inevitável quando tudo, na verdade, é de fachada. Não foi à toa que Sayaka Murata, que também trabalhou por muitos anos em uma dessas lojas de conveniência, ganhou o importante prêmio Akutagawa, em 2016, e já vendeu, só no Japão, mais de 700 mil exemplares. Assim pôde deixar para trás sua querida konbini.

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