‘Nós”: inspiração para as distopias modernas

Por mais que isso pareça um pouco sombrio, tenho grande fascinação por distopias, ao ponto de ter escrito uma para chamar de minha uns anos atrás. A ideia de uma realidade alternativa à nossa, ou mesmo de várias realidades alternativas, sempre me pareceu deliciosa. Ainda mais quando um texto que surge dessa ideia de levar o ser humano ao limite de sua capacidade de suportar uma situação, mas o limite é tão difuso que esse mesmo ser humano tem dúvidas se deve agir ou não.

E também tenho uma queda pela literatura russa. Então, juntamos aqui a fome com a vontade de comer.

Inspirando distopias desde 1920

Desde as distopias mais clássicas, como 1984Admirável Mundo NovoLaranja Mecânica, Fahrenheit 451, até as mais recentes, como Submissão, A Estrada e a série Divergente, praticamente todas têm personagens que tentam de alguma forma enfrentar esse limite, seja com a intenção de salvar o mundo do jugo ditatorial ou se livrar desse jugo por meio de violência extrema, estratégias ou outros expedientes. Ou mesmo se deixar levar por essa realidade e sobreviver a um ambiente apocalíptico, sem saber o que fazer, mas de alguma forma interferindo nele.

Em maior ou menor medida, grande parte dos livros citados teve como inspiração direta ou indireta Nós, de Ievgueni Zamiátin, traduzido do russo por Gabriela Soares. Foi um livro que entrou no hype dos últimos meses, o que é uma grata surpresa, considerando que é uma obra de 1923; podemos dizer que houve a junção do trabalho de marketing da editora, que tem fãs fiéis que fazem barulho e são muito bem acompanhados nas redes sociais, até o ótimo trabalho de tradução, diagramação e arte do livro de capa dura, um fetiche entre leitores novos e já mais calejados, além dos extras: uma resenha de George Orwell, comparando Nós com Admirável Mundo Novo, e a carta de Zamiátin para Stálin, pedindo para se exilar. Realmente ficou bonito.

Nós

Em Nós, acompanhamos o engenheiro D-503 em uma sociedade mais ou menos mil anos à nossa frente, em que os seres humanos são regidos pela matemática, pela lógica, consideradas o caminho para a perfeição. Governados por um Estado Único nas mãos do Benfeitor, esses humanos (chamados de “números”) levam uma vida regrada, inclusive com relação a passeios, diversões e sexo. Ciúmes, sentimentos mais intestinos, confusões emocionais inexistem nessa sociedade.

Por ser tão perfeito, o Estado Único resolve construir a Integral, uma espaçonave que levará diversas obras de arte, poemas e outros para civilizações alienígenas distantes. E aí começa nossa aventura ao lado de D-503, um dos engenheiros responsáveis pela Integral, que resolve descrever aquela sociedade, mas acaba fazendo isso contando sua história em tempo real. Que começa a ser afetada por I-330, uma mulher misteriosa que tem um gosto bastante acentuado pelo perigo e pelo desrespeito às regras daquela sociedade perfeita, mas não à toa: existe um plano para a contínua revolução.

Claro que já vimos essa história, mas em textos que foram escritos depois de Nós, por isso é uma delícia passear por esse mundo que serviu de base para muitas das distopias famosas que vieram.

Uma sátira séria

Devemos lembrar que Ievgueni Zamiátin, como outros escritores de sua época, era também um satirista, então muitos dos elementos que parecem sérios dentro do romance na verdade são gozações hilárias aos costumes de sua época, inclusive quando se trata de governo e de relacionamentos pessoais. Também é uma crítica social feroz ao controle do Estado sobre as vontades do ser humano e sua liberdade (quase toda distopia tem uma crítica social e aos governantes, seja ela explícita ou velada, que encontra eco na tecnologia, na degradação e no controle do ser humano). Não foi à toa que esse livro e toda a obra de Zamiátin foram censurados à época do lançamento. Nós, por exemplo, foi publicado legalmente na antiga URSS apenas em 1988, quando do início da abertura política e do desmembramento do estado soviético.

Uma característica bastante marcante é a abundância de reticências usada como um recurso estilístico poderoso. As lacunas que o texto deixa em diversas partes, tanto nas falas das personagens como na narração de D-503, deixam grande margem para que o leitor imagine aqueles trechos interrompidos. Como fiapos de conversas que ouvimos e queremos mais.

Ao mesmo tempo, isso torna o romance um tanto fragmentado, complexo para acompanhar como uma aventura. Porém, o caráter episódico também é um ponto positivo, pois nos coloca na posição de observador de um diário sendo criado, um registro da vida daquele homem angustiado. No início, os escritos do cientista são uma maneira de louvar o Estado Único e a sociedade perfeita, mas depois se transformam numa descrição afoita de seu dia a dia dele às voltas com I-330.

Também chamam a atenção as imagens criadas com personagens, como a redonda O, o corcunda S, com suas orelhas de abano, I, sempre descrita como longilínea, o médico magro como folha de papel e boca de tesoura. Cria um tanto de sensação de desenho animado, interrompida pelas cenas de violência ou mesmo de repressão do Estado.

Claro que já vimos essa história, mas em textos que foram escritos depois de Nós, por isso é uma delícia passear por esse mundo que serviu de base para muitas das distopias famosas que vieram. Enxergar dentro da obra o Grande Irmão, a sociedade perfeita, as obras de arte proibidas e ignoradas como sendo primitivas, a rebeldia de um grupo insatisfeito por não poder ter alma, imaginação, sonho, o desejo de volta às origens, tudo isso não é novidade hoje, mas foi  revolucionário à época de Zamiátin.

***

Existe um filme de 1982 inspirado no romance e criado pela rede de televisão alemã ZDF. De acordo com o canal de YouTube do alemão Mark Mandala (clique aqui para conhecer), onde encontrei o filme, até 2013, ele não havia sido exibido novamente e também não existia uma versão em DVD. O vídeo está em alemão, infelizmente sem legendas… ainda.

NÓS | Ievgueni Zamiátin

Editora: Aleph;
Tradução: Gabriela Soarez;
Quanto: R$ 50,94 (344 págs);
Lançamento: Março, 2017.

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