A expressão é ridícula, mas tem uma grande utilidade: ela diz muito sobre a pessoa que a usa.
— Renato Motta, tradutor
Quer matar um tradutor de ódio? Utilize essa expressão, é a melhor maneira. Vinda do italiano por vias muito tortas, o velho, surrado e injusto adágio traduttore/traditore (tradutor/traidor), tão antigo e empoeirado, remonta aos dragomans otomanos (ou tercüman), que tinham a ingrata tarefa de transmitir aos vizires as negociações feitas em outros países. Em geral, essas negociações eram bastante complicadas, recheadas de palavrões e escárnio, e como sempre o mensageiro era quem pagava o pato. Para escapar do castigo, esses intérpretes-embaixadores aliviavam esses “recadinhos” mal-educados dos mercadores e autoridades estrangeiros, adoçando as palavras alheias, editando de leve para não enfrentar a fúria do vizir. David Bellos, no livro Is That a Fish in Your Ear?, dá um exemplo muito esclarecedor:
[…] quando o sultão Murad II concedeu permissão para os mercadores ingleses fazerem comércio nas terras otomanas, a carta original em turco dizia que a rainha Elizabeth “demonstrou sua subserviência e devoção e declarou sua servidão e afeto” ao sultão. Para a comunicação posterior com a corte inglesa, a carta foi traduzida pelo grande dragoman para o italiano, que ainda era a língua original do império otomano. Em italiano, no entanto, a carta não diz o mesmo: expressa a fórmula turca elaborada de forma econômica como sincera amicizia. […] Ele (o dragoman) sabe que seu mestre nunca considerará a rainha da Inglaterra como uma monarca de igual poder; e, como diplomata experiente, ele também sabe que Elizabeth I possivelmente não aceitaria a expressão de “servidão” ao sultão, mesmo em um floreio convencional.
Como o próprio Bellos diz, salvo em casos muito excepcionais, a expressão está errada e sempre esteve. A arte da tradução pode ser uma arte de ilusão, mas nunca de traição – nós criamos condições para que alguém que não lê em um idioma leia uma obra criada nele.[1] Como os escritores, que contam com a “suspensão da realidade” para que o leitor acredite nos fatos que ele escreve, sejam eles mais calcados na realidade ou extremamente fantasiosos. O tradutor também conta com essa capacidade do leitor: que ele, durante a leitura, se convença de que o autor teria escrito daquela maneira se soubesse português, pois o tradutor – essa figura ainda malvista por muitos – se esmerou para compreender, desmontar e remontar a obra de forma que emulasse o texto original. E quando o fazemos, nunca temos uma má intenção, nunca pensamos no engodo, mas em uma verdade que compartilhamos com os leitores.
Há pouco, conversando com uma editora, comentamos sobre a leitura profissional, aquela feita por tradutores, preparadores, revisores e editores. Como é rica e profunda essa leitura, muito diferente daquela leitura de “entretenimento” ou “de gosto”, em que não nos preocupamos muito com meandros, mas sim com a história contada, com a forma como é contada. Na leitura profissional, a preocupação também se volta a esse fato, mas também a como ela será recontada em nosso idioma, como o público receberá aquelas palavras, como as escolhas se aproximarão ao máximo daquelas do escritor, quem é o autor, como ele se expressa, como emular – essa palavra é importante, não à toa aparece aqui novamente – a voz, os trejeitos, as manias e preferências do autor de forma que o leitor sinta esse diálogo intermediado da forma mais suave possível. Se isso for traição – se alguém encontrar ainda elementos da traição nesta atividade –, meu entendimento dessa palavra deve estar muito errado.
Por isso o adágio me incomoda. Me faz mal. Como as belles infidèles, as belas infiéis (Se uma tradução é bela, não pode ser fiel. Se fiel, não pode ser bela), que têm uma carga extremamente sexista e preconceituosa e já renderam artigos feministas inflamados[2] , a expressão traduttore/traditore deveria ser banida do vocabulário comum, sendo relegada àquelas expressões, obras e comportamentos existentes e indesejáveis, ou a um marco de um tempo que já não existe mais. Pois o que fazemos hoje, com a compreensão que temos da arte-ofício que é a tradução, está muito longe de ter como objetivo enganar alguém. Salvo as raras exceções que Bellos comenta, somos o elo entre o estrangeiro e o nacional, o alheio e o nosso, o distante e o próximo.
Então, da próxima vez que vier à mente a malfadada expressão, lembre que estamos ao lado do leitor, sempre.