Vitória

— Pois eu já te esperava.

Pouco antes desta frase, ouço o rascar de metais e olhei para cima. As asas douradas esticam-se e batem como se a estátua fosse voar. A reverência quando ergo os olhos me assusta tanto que me jogo de costas no alambrado. Nenhuma viva alma aos pés da estátua, que fica a sessenta e sete metros sobre um obelisco na Avenida 17 de Junho, em Berlim. Vitória é o nome dela, mas não sei como me dirigir a uma estátua.

— Não se preocupe, me trate por você. Sei que os alemães não gostam de tanta informalidade, mas estamos aqui a sós, pode ficar calmo.

Como eu ficaria calmo? Não havia tomado nenhum alucinógeno, a não ser que houvesse algo no suco de laranja do hotel. Por anos a fio sonhei com aquele momento, estar sobre a Siegessäule, a Coluna da Vitória, pertinho da estátua que dá nome ao monumento. Enquanto ela baixa lança e coroa de louros, penso que ainda estou dormindo.

— Há muitos anos, outro rapaz como você esteve aqui e conversei com ele. Era um brasileiro também. Vocês brasileiros são bons de conversa, mas escolho a dedo. Em geral sobem aqui em grupos, conversam entre si, me olham, mas querem mais ver a paisagem. Que é muito bonita mesmo. Porém, poucos falam alemão, e eu às vezes preciso conversar. É muito tedioso aqui. Sabe desde quando a Vitória está no posto de guardiã do parque?

— Mil novecentos…

— Mil oitocentos e setenta e três.

— Nossa!

— Sim, meu rapaz. Duas guerras intacta.

— Mas o que eu…

— Não vou lhe pedir nada por enquanto. Quero apenas conversar.

— Peraí, Vitória. Vamos combinar que não é nada comum…

— Sei, sei. Desculpe pelo susto. Vamos começar de novo. Meu nome é Vitória, sou uma estátua, e seu nome é?

— Jonas.

— Hum. Bonito nome. Como o da história bíblica.

— Sim.

— Que você me conta do mundo lá embaixo?

— Estou adorando Berlim. É uma cidade muito bonita e moderna.

— E o mundo, como está? Tudo em paz?

— Mais ou menos…

— Ai, não venha me dizer…

— Não, não foram vocês desta vez. É que tem algo de esquisito lá pros lados da Ucrânia, Rússia…

— Os russo, ah, os russos…

— E a crise europeia.

— Nunca saímos da crise. Vendo aqui de cima percebo isso. Mas a crise é mais de identidade. Os europeus nunca souberam direito quem são, por mais que neguem. Aliás, os seres humanos são sua maior incógnita.

— Já nos chamaram de câncer da Terra.

— Que forte. Não concordo muito com isso… talvez cupins…

— Que para uma árvore frondosa dá no mesmo.

Conversamos mais uns minutos, a estátua é serena, ri das minhas tiradas, comenta sobre pessoas que sobem ali todos os dias. Então, a conversa muda de rumo, mas antes, como em todo conversa interessada, vem o elogio.

— Como eu disse, vocês são bons de conversa mesmo. Jonas, não é mesmo? Quero fazer uma proposta para você.

— Hum…

— Gostaria de morar em Berlim?

— Claro!

— Sua família não daria falta de você?

— Talvez. Mas eles poderiam me visitar e…

— Não poderiam.

— Como assim?

— É muito simples. Eu, na verdade, sou a sexta Vitória. Antes de mim vieram cinco outras que hoje vivem lá embaixo.

— Não entendi.

— Nunca fomos apenas estátuas. Somos semideusas. Presas num corpo metálico, mas não deixamos de ser semideusas. E todas as vezes que conseguimos conversar com alguém de carne e osso e que nos pareça confiável, fazemos essa proposta. Que funcionaram nas outras vezes e, assim espero, funcionará com você. Quer assumir o meu lugar e eu assumo o seu?

— Mas eu sou homem.

— Não importa. Você assumirá a forma da primeira Vitória, e eu a sua.

Neste momento minha respiração para por um instante e volta num arfar pesado. Essa proposta é absurda demais, eu não quero ser estátua. Por outro lado, minha situação no Brasil não é nada boa. Vim para a Alemanha com as últimas economias depois de ter o coração despedaçado. Era um sonho vir para cá, um sonho caro, mas aqui estou. Conheci pessoas, fiz algumas amizades nestes tempos aqui, mas não sei se estou preparado para abdicar da vida.

— Sei o que está pensando — diz a Vitória. — Que vai desperdiçar uma vida ainda no começo para ser estátua, como todos que já tivemos a oportunidade de abordar. O que tem de tão especial na sua vida?

— É, a vida… a própria vida, estar vivo.

— Quantos anos você tem?

— Trinta e dois.

— E nestas trinta e duas primaveras, quais foram suas conquistas?

Nenhuma. Eu me nego ser sincero com ela.

— Bem, tenho amigos, família…

— E onde eles estão agora?

— No meu país.

— E por que não estão ao seu lado, no momento em que você mais precisa deles?

Acho que ela me pegou.

— Pois bem, acho que minha proposta começa a ficar interessante para você. O silêncio mostra que sua vida lá embaixo não é tão boa a ponto de você rechaçar minha oferta.

— Eu posso fazer uma ligação?

— Quantas você quiser.

— Só preciso fazer uma.

— Fique à vontade. Só vai ser um pouco difícil te deixar sozinho, mas tentarei não prestar atenção na sua conversa.

— Está bem…

Disco o número da chamada internacional. Um toque. Dois toques. E atende.

— Lucas?

— Sim, quem é?

— Jonas.

— Ah, oi.

— Estou em Berlim.

— Que bom. Está frio aí?

— Escuta, preciso falar uma coisa.

— Diga.

— Eu te amo. Eu sempre vou te amar. Se um dia não nos virmos mais, sei lá, se eu sumir por aí, saiba que eu te amo.

— Jonas, você não vai fazer uma besteira aí. Por favor, já conversamos sobre isso, acabou. Seu pai vai ter uma trabalheira danada se você fizer uma bobagem, fora a triste…

— Lucas. Eu só queria dizer que te amo. Tchau.

Desligo. Missão cumprida.

— Vitória?

— Sim. Pelo visto ele não merecia mesmo o seu amor.

— Você ouviu tudo?

— Não consegui evitar. Mais alguma ligação?

— Então…

— Podemos começar a transição? É só você encostar a sua mão na minha e logo você estará aqui, soberano sobre Berlim.

— Bem…


Chego em casa, na Oderberger Strasse, e Ralf está debruçado sobre a mesa de desenho, concentrado. Vou até ele, dou um beijo e olho pela janela. Admiro as folhas douradas do início de outono. Acho que nunca vou me acostumar com elas.

— Ralf, já te contei a história da Coluna da Vitória?

— A que você estava drogado, alucinando? Umas três vezes, Schätze. O que você vai querer para o jantar?

— Eu não estava alucinando, não! — falo, fingindo estar indignado, mas com um sorriso no rosto. — Não sei o que quero comer. Levou o Uli pra passear hoje, amor?

— Não deu tempo. Estou acabando um desenho aqui e já levo.

— Pode deixar, uma voltinha no Volkspark vai me fazer bem. Termine suas coisas e faça alguma coisa pra gente comer, tá?

— Está bem. Ich liebe dich.

— Também te amo. Tschüss, até daqui a pouco.

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