Numa terra muito distante, onde belas princesas e esbeltos príncipes se amavam para sempre, ou quase sempre, havia uma turma de anões. Pouca gente lembra, assim, de pronto, o nome de todos: Atchim, Zangado, Dunga… Mestre, Dunga, Dengoso. E um deles todos fizeram questão de esquecer: Vingativo. Quando os irmãos Grimm souberam da história, contada por séculos e séculos a fio, dessas memórias de tempos distantes que mudam de conto em conto, souberam logo: teremos que cortar o Vingativo. O oito é o número da eternidade, e toda história precisa de um fim. E sete é um número cabalístico, então resolveram apostar nele.
Quando Disney resolver contar a história da Branca de Neve, cujo enredo todo mundo conhece, nem se fez de rogado: apagou da película a presença nefanda de Vingativo. Seria uma má influência para as crianças, pois o Vingativo nunca se deu mal, apesar de todas as travessuras e atrocidades que cometera durante sua nada breve vida.
Vingativo nasceu sob o signo da discórdia, dentro de uma caverna escura quando sua mãe, uma curandeira de fama duvidosa, fugia da fogueira da aldeia. Abandonado quando a curandeira viu a feiura do bebê, foi encontrado por um casal muito bondoso da aldeia vizinha que passeava por ali. Cresceu cheio de mimos, amado como ninguém, apesar de ficar a cada dia mais horroroso: orelhas grandes demais, olhos apertados, bochechas altas, boca caída e prejudicado verticalmente. Quando começou a sair para brincar com as outras crianças, um menino zombou de seu tamanho. E ele praticou sua primeira vingança: numa das tardes na floresta, as crianças brincavam de esconder. O menino zombador estava de cócoras, escondido atrás de uma moita que ficava à beira do rio. As outras crianças lembraram até a velhice do sorriso de Vingativo quando os adultos saíram em busca do menino zombador desaparecido.
Com vinte anos, Vingativo saiu de casa. Não por ter brigado com os pais, nem porque fora expulso de casa por suas muitas maldades (queimou uma casa, matou alguns bois e cabras de um vizinho insolente, cortou o dedo de uma menina que o esnobou, tudo feito com perspicácia para que a culpa não recaísse sobre ele), mas porque sentiu a necessidade de ganhar o mundo. Amava os pais, mas percebera desde sempre que não pertencia àquela aldeia, àquelas pessoas. E sentia que encontraria sua turma.
E encontrou. Um bando de anões bobocas que sempre cantavam e brincavam. Chegou quase a simpatizar com o tal Zangado, mas ele reclamava de coisas tão ridículas que pegou uma birra danada dele. Mas Vingativo foi bem recebido, todos o entendiam, e isso o deixava ainda mais com raiva. Porém, sentia-se de alguma forma em casa. Todos baixotes, com as mesmas limitações que ele. E todos o adoravam, pois ele fazia uma torta de morango maravilhosa e também era o mais inteligente dos anões. Até que chegou uma tal princesa.
Alta, bonita e com uma voz insuportável. E todos ficaram apaixonados.
Como todos sabem, os anões eram incansáveis trabalhadores das minas. De lá tiravam seu sustento, os metais que vendiam no mercado de diversas aldeias para os ferreiros e as pedras preciosas e semipreciosas que negociavam com os joalheiros. Amealharam uma pequena fortuna, tudo organizado com perícia por Vingativo, que mal lembrava porque recebera aquele nome. E estava prestes a ser rebatizado de Esperto.
Foi quando chegou a tal Branca de Neve.
Os sete idiotas derreteram-se por ela, sem perceber que era uma aproveitadora. Fugindo de casa, pois boa bisca não devia ser, ela pediu abrigo aos anões e foi recebida com pompa e circunstância (menos por Zangado, que era um pouco mais sagaz que os outros). Porém, até o Zangado se deixou levar pelos encantos da safardana. Menos Vingativo. Ele verificou os livros de contabilidade dos anões e percebeu a queda brusca desde a chegada de Branca de Neve. Os anões não queriam mais trabalhar, apenas buscar frutas, brincar na floresta e curtir seu amor platônico pela grande princesa. Ela, por sua vez, aproveitava da hospitalidade e da estupidez dos anões, dormindo às tardes enquanto eles tentavam trabalhar (a concentração andava em baixa) e, quando voltavam, a comida estava prontinha… feita por Vingativo, pois Branca de Neve mais atrapalhava que ajudava.
Num dia, cansado da cantoria de Branca de Neve e de todos aqueles animais invadindo a cabana toda vez que ela soltava a voz, Vingativo foi até o castelo procurar os responsáveis daquela pequena grande insolente. Achou uma rainha má que não sabia o que fazer para acabar com a princesinha que atrapalhava seus planos de reinado absoluto. Vingativo, um mestre em revanches perfeitas, explicou como ela poderia se livrar da princesinha. Sentindo-se vingado, voltou para a cabana, mandou Branca de Neve caçar sapo na floresta, limpou o cofre dos anões e caiu novamente na estrada.
Mudou seu nome para Ricaço, casou-se com uma bela estalajadeira numa terra mais, mais distante ainda, teve muitos filhos grandes que cuidaram dele até o fim da vida, aos 110 anos. Pouco antes de morrer, ouviu dizer que a rainha madrasta se dera mal em seus planos e pensou muito no que teria dado errado no seu plano perfeito. Uma maçã envenenada, um suposto suicídio numa queda dentro de um poço… o que a maldita rainha fizera de errado?
[Originalmente publicado em Quotidianos.]