Mokosh

 

…não existia.

E Mokosh tingia os fios. Sem pressa nenhuma. Sem medo do tempo. Pois o tempo não existia.

Nada existia além do caldeirão enegrecido, do fogo, e das mãos de Mokosh. Aquela que não tinha morada, pois morada não havia. Que percorrera o nada tingindo os fios do destino. Não havia pressa. Nem medo. Nem tempo. Pois nada além de Mokosh e suas mãos trêmulas existiam.

Fios tingidos em meio ao nada nebuloso, ao caos e à confusão. Fios que seriam o início.

E no início era o caos. Nada além.

Do caos, Mokosh começou a fiar, a tramar calmamente o que haveria de ser. Sem urgência, pois não havia. O tempo. Entre os dedos de Mokosh, os fios já secos tomavam forma, meadas emboladas sendo desfiadas entre as unhas de dedos incertos, de mãos trêmulas. E ela repuxava os fios e os entremeava, imaginando o que dali sairia.

Os fios azuis.

Os fios marrons.

Os verdes fios, tão belos.

Fios rubros, amarelecidos.

Fios pretos. Fios cinzentos.

A tinta que pintava os fios era o sangue de Mokosh. O sangue que gotejava dos olhos vazados de Mokosh. Que enchia o caldeirão enegrecido, que borbulhava sem pressa, pois o tempo não existia.

Apenas o fogo. O caldeirão. E as mãos de Mokosh.

Com a ponta dos dedos, os destinos começavam a ser fiados. Depois de organizado o caos, depois que a existência já estava fiada, era hora de trançar os destinos.

Mas eram secas as terras que Mokosh criara com os primeiros fios. Era árida e nelas nada crescia. A vida, ansiada por Mokosh, não havia. Nem o tempo. Nem o caos. Apenas o nada restara, o nada que angustiava Mokosh.

Então, ela chorou.

Um choro amargo, mesclado ao sangue de seus olhos vazados, róseo e salgado. E a terra criada por Mokosh ficou úmida, como ela própria, úmida com suas lágrimas que corriam em regatos na sua pele marcada.

Mokosh, atemporal, chorava sem pressa, pois tempo não havia. Nem haveria de existir enquanto a vida desejada por ela não despertasse. E na última gota de lágrima, Mokosh soube que a vida dera o primeiro passo. E surgiu o sorriso. No rosto marcado pelos veios fundos do choro doído de Mokosh. O sorriso que iluminou a terra fiada pelos seus dedos. E a vida dera o segundo, o terceiro, o milésimo passo.

E os fios verdes, marrons, pretos, rubros e amarelecidos estenderam-se sobre a terra de Mokosh. E o caldeirão seco esfriou e se estilhaçou, salpicando a terra com o ferro. E os mares surgiram das lágrimas, e os rios da saliva que escorria do canto da boca de Mokosh. E com um sopro, Mokosh espalhou as sementes dos seres que habitariam sua terra.

Somente aí Mokosh criou o ser humano. Dos fios mais raros e com a trama mais intrincada. Pois não haveria ser mais complexo sobre sua terra que o humano.

E o tempo passou a existir. E, a partir desse momento, Mokosh não faz outra coisa a não ser fiar os destinos. Daqueles que povoaram as terras que Mokosh criara com os fios tingidos de sangue. De todas as cores.

Sem pressa nenhuma.

Sem medo do tempo.

Pois o tempo…

[Originalmente publicado em Quotidianos.]

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