Obrigado, Cortázar.
Naquela manhã de outubro, o céu estava muito azul, mas o dia não estava muito quente, soprava uma brisa leve e agradável. Foi quando o rapaz acordou olhando para o teto, o quarto estava escuro, com a luz se esgueirando rápida por entre as frestas da persiana. Ele abriu os olhos assim que ouviu o alarme do celular, mas algo não estava muito certo, pois ele sempre acordava de bruços. Quando se levantou, percebeu o que havia de estranho: havia acordado com a cabeça virada.
Não doía. Não sentia sequer um fisgar, um torcicolo que fosse. Sua primeira reação foi de desespero e, ao levantar-se com tudo, bateu o peito e a cabeça na parede quando tentou avançar, seguindo a lógica que faltava à situação. Primeiro com os braços estendidos, derrubou tombou o abajur ao lado da cama e, em seguida, o espelho que ficava na parede ao lado do armário. Respirou fundo, sentindo seu peito, que agora ficava nas costas, inchar e desinchar. Apesar da estranheza, o que mais o incomodava era olhar a própria bunda.
Sua bunda, realmente, não era bonita.
Olhou para o relógio da parede: 8h40. Estava atrasadíssimo. Seria o terceiro atraso na semana, sua chefe na fábrica não o perdoaria. Pensou um instante. Talvez pudesse alegar doença. Mas não sentia nada. Não escorria o nariz, os braços e pernas funcionavam, a bunda estava no lugar, ou seja, não havia como alegar doença. A não ser mostrar a sua situação. Sua cabeça estava virada.
Imaginou o diálogo com a chefe. “Cabeça virada não é doença, a minha vira a cada mês. Venha logo.” Suspirou, e foi para um banho rápido. Que não foi tão rápido assim.
Às nove, ele foi se trocar. Depois de se secar com dificuldade, sentou-se na cama e, tateando, calçou as meias, ergueu-se com dificuldade para deslizar a cueca pelas pernas, vestiu uma camisa de forma muito engenhosa: com dois espelhos, um na parede, outro deixado em cima da cômoda do outro lado do quarto e apertou o cinto. Sem saber ao certo de que lado teria que deixar a fivela.
A sua sorte era que a fábrica ficava no final da rua em que morava. Foi até o elevador, rezando para não encontrar nenhum vizinho. Passou pelo porteiro, que deu um grito e gaguejou quando ele lhe deu bom dia e saiu pela portaria às pressas.
Na rua, percebeu uma movimentação estranha. Gritos, palavras de ordem, uma confusão que vinha da outra ponta da rua. Andava de lado, a única maneira de avançar sem tropeçar, sem cair. Sentiu-se um caranguejo. Imaginou-se um grande caranguejo, estalando a patola enquanto seguia para o trabalho. Foi quando entendeu o confusão.
Um carro de som. Uma mulher berrava, pedindo melhores salários aos trabalhadores, um absurdo, os lucros. Ele via os colegas que, fascinados pela oradora sobre o carro de som, não o perceberam. Ele perguntou para seu vizinho de baia o que estava acontecendo. Segundos antes de desmaiar ao olhar o rapaz de cabeça virada, ele respondeu:
— Greve. A fábrica está em greve. Ninguém vai entrar.
Originalmente publicado em Quotidianos.