Aviso: esse post tem um forte teor de sinceridade.
Não tinha intenção nenhuma de terminar o semestre no Ponte de Letras com mais um texto assim. Queria mesmo encerrar essa “temporada” com uma postagem fofa, cheia de flores e amores e louvores, mas a realidade, meus amigos, é bandida. Mas não é pior que uma turma que, por mais que a gente fale, por mais que a gente brigue, por mais que a gente se esgoele para mostrar que ela está errada — isso mesmo errados, com todos os “érres” e “ésses” —, continua a perambular por aí e distribuir ideias deturpadas de como acontece uma das etapas importantes do processo editorial e também em outras áreas da tradução: o trabalho de preparação e revisão.
Vamos começar a lavação de roupa suja com um fato muito simples, destacado para não restar dúvida nenhuma:
O TEXTO QUE FOI TRADUZIDO NÃO É SEU, PREPARADOR!
Isso mesmo. Ele não é seu. Foi recriado por outra pessoa, o tradutor, e essa pessoa merece todo respeito. Por mais que o trabalho não tenha sido perfeito, isso não dá a ninguém o direito de esculhambar o texto alheio. Claro que não é nada agradável ver que alguém que supostamente não tinha capacidade de encarar aquele livro tenha sido contratado. E muita gente acha isso, mesmo que o texto não seja um desastre completo. Eu sei que há muitas variáveis na questão da escolha do tradutor, muitas delas vão além do que podemos compreender, mas de qualquer forma: se o editor escolheu você, querido preparador, e você aceitou a incumbência de dar um jeito na bagunça, dê um jeito. Depois, faça seu relatório, tentando ser o mais imparcial possível, mas apontando as dificuldades, problemas e tudo o que puder. Sem ofender ninguém, sem subir no salto. É um direito e um dever seu para com os outros colegas que vão pegar o texto em seguida, e até mesmo para com o cara que traduziu. É bem possível que ele aprenda muitas coisas com você.
Mas não é dele que estou falando. E por isso vou dar mais um toque em destaque, para não perder o costume:
SE O TEXTO ESTIVER BOM, CAMARADA PREPARADOR, NÃO MEXA. NÃO TROQUE SEIS POR MEIA DÚZIA.
Tem gente que adora fazer isso. “Ai, vou mudar aqui, porque eu não gosto de sovaco, prefiro axila”. Não, camarada, não faça isso. É feio. O texto não é seu, não foi você que ficou horas ralando e suando frio para tomar a decisão de botar “sovaco” no texto que é super informal e que o amigo tradutor escolheu. Escolha é a palavra da vez: as escolhas não são feitas a esmo, tradução não é um monte de palavras empilhadas na página. Se fosse, qualquer máquina poderia fazer. E já está fazendo com alguns tipos de tradução mais técnicas — que, obviamente, têm a ajuda de um ser humano para que o texto fique redondo no final. Aí pode mexer, fuçar, escangalhar, pois a máquina juntou aquelas palavras segundo sua programação, não teve suor, ralação e frio na barriga para escolher “sovaco” em vez de axila. E mesmo assim, pega leve, pois a máquina acerta muito. Muito mesmo. E essa arredondada vai tirar a cara de “máquina” do texto e dar uma cara humana. Porém, quando o texto já tem uma cara humana, o negócio muda de figura.
O TEXTO, CAMARADA PREPARADOR, NÃO PRECISA FICAR COM A SUA CARA PARA FICAR BOM.
Não dá nem vontade de comentar essa daí. Mas essa frase só é óbvia para quem já esteve dos dois lados do balcão: como preparador e revisor, e como tradutor. E deveria ser uma verdade para aqueles que não estiveram do lado do tradutor, aqueles que são revisores e não querem a encrenca que é traduzir. Estes deveriam olhar com mais carinho para o outro lado. É uma questão de empatia. Que deve ser praticada dos dois lados. A fúria para achar erros no trabalho alheio muitas vezes leva ao erro, ou seja, você encontra um errinho aqui, outro errinho ali e já acha que tudo tá uma merda. Não, dificilmente está tudo uma merda. Tome distância dessa raiva e tente ser imparcial ao olhar o texto alheio. Se merecer canetada, como se diz no meio editorial, senta a canetada, mesmo. Agora, o texto está bom, mas você não escreveria desse jeito? Então, deixa. Pois…
O TEXTO QUE FOI TRADUZIDO NÃO É SEU, PREPARADOR!
É tão bom quando a gente pega um texto preparado por alguém que nos respeita. Que pensa como a gente. Que não conhece a gente, mas sabe que todo mundo está trabalhando pelo mesmo objetivo: o melhor livro que podemos fazer. Que sabe que o tradutor não ganha nada sendo ruim, apenas bordoada. Já ganha se é bom e se esfalfa para fazer o seu melhor, imagina quando é ruim. Que se ele falhou mais no texto em questão, teve seus motivos. Não é justificativa, nem desculpa esfarrapada, é a realidade. Nem sempre a gente tá 100%, e por isso a figura do preparador é tão importante, fundamental, eu diria. E fico feliz da vida quando pego uma preparação de texto meu com várias marquinhas, pois com elas eu aprendo um monte. E com algumas, aquelas que eu recuso (pois tenho motivo para recusar), eu consigo ensinar bastante também. Texto preparado vem marcado, às vezes mais, às vezes menos. Em partes muito, em outras pouco. Assim a gente pode ver nossas bobeadas, ou as bobeadas alheias. Essa troca nem sempre é possível, mas seria muito desejável no fim das contas. Todo mundo — desde o editor, até o tradutor, o preparador e os revisores — ganharia se houvesse tempo, disponibilidade e menos egos inflamados por aí.
E para fechar, um recadinho para os tradutores:
TRADUTOR, POR FAVOR, PENSE NA PRÓXIMA VÍTIMA DO SEU TEXTO!
Sim, é isso mesmo. Lembra a empatia que comentei lá em cima? Serve para vocês também, tradutora e tradutor. Se você fosse preparador, gostaria de pegar um texto todo esculhambado, ruim, errado, manco, torto, espinafrado? Não, né? Então não faça um texto com todos esses predicados. Faça uma boa revisão antes de enviar para a editora, passe corretor ortográfico, faça aquela leitura final caprichada para ver se tudo faz sentido, se está coeso, se não tem muita repetição. Sei que a vida é corrida, mas zele pelo seu nome. É a única coisa que temos e é aquilo que vai na folha de rosto — da maioria — dos livros. É sua assinatura, meu amigo. Se você mandar um texto mais redondinho, pode ter certeza de que o preparador não vai ter uma sanha assassina quando começar a ler o seu livro traduzido. As chances de ser um sucesso são grandes. Mas, como diria aquele cara do Tropa de Elite 2: “Se quiser rir, tem que fazer rir”.
Beijos, abraços e até a próxima.
É isso aí, Petê! Concordo inteiramente com você. Nunca estive do lado do preparador, mas é frequente estar nos papéis de revisora e de tradutora. Por pior que a tradução possa estar, o mínimo que o tradutor merece é respeito por parte do revisor. Vamos corrigir e melhorar, mas sem a sanha de trocar seis por meia dúzia; sem a necessidade de riscar apenas para mostrar serviço ou porque não gosta desta ou daquela palavra. Afinal, uns melhores, outros piores, somos todos profissionais…
Katia, em primeiro lugar, obrigado pelo comentário e pela leitura. Como você disse, uns piores (que podem melhorar), outros melhores (que podem melhorar ainda mais) e todos profissionais buscando a mesma coisa: fazer um livro ótimo para o leitor. Nos bates-e-rebates do processo editorial, não se pode perder de vista o cara que, lá no fim, vai pegar o livro para ler. Se todos tivessem essa visão, de que somos uma corrente e não um ringue, tudo ficaria mais legal.
Volte mais vezes. 😉
Adorei o desabafo. Agora, faço o meu.
Eu faço parte da turma dos preparadores, e sempre procurei exercer a empatia com quem pegou o trabalho antes e depois de mim. Afinal, penso que houve um trabalho hercúleo de selecionar aquela palavra, aquela frase, naquele determinado contexto. E creio que esse foi um ponto crucial que você abordou: a grave falta de empatia entre os profissionais de nossa área. Vou contar brevemente uma experiência que tive há pouco tempo. A editora em que eu trabalhava me passou a tarefa de preparar uma obra da área da filosofia do direito cujo original era alemão, já que essa língua maluca é uma das minhas especialidades. Pois bem. Desde o momento em que li a obra antes de prepará-la, eu me imaginava no lugar do corajoso tradutor que pegou esse trabalho e, além disso, “babava” pelo ótimo trabalho realizado. Claro que houve dúvidas quanto a certas escolhas e resolvi escrever um e-mail para ele. Ele foi de uma cordialidade, prestatividade e fofura tão raras hoje em dia, que, além de sanar minhas dúvidas, elogiou meu trabalho, dizendo da pertinência de minhas dúvidas, da não invasão em seu texto etc. Fiquei muito contente de ter feito esse trabalho; no entanto, passaram esse livro para outra pessoa fazer a primeira revisão. Ela o recusou, pois, segundo a fofa, havia “coisas estranhas na tradução”, “ininteligíveis em português”, enfim, falou um monte de abobrinha do ótimo trabalho do tradutor. Enfim, rolou a tal da falta de empatia mencionada, pois o texto não estava “ininteligível”; estava, sim, traduzido de acordo com a linguagem do público-alvo dessa obra: juristas, oras. Houve má vontade (e preguiça, por que não) da fofa. Ai, é muita falta de empatia, falta de noção, falta de “simancol” para muitos de nossa área. E, na boa, preparador que utiliza a “peixeira” aleatoriamente, trocando seis por meia dúzia, é um tradutor/escritor/editor frustrado. Já convivi com esse tipo de peça. Nada que uma boa terapia não resolva, haha. Ótimo texto!
Oi, Ellen,
Espero que um dia você ainda pegue um texto meu do alemão para preparar. Vamos nos divertir muito. 😉 É muito bom quando a gente encontra eco para as nossas ideias, como essa da empatia e do trabalho para um só objetivo. Obrigado pela visita e pelo seu comentário.
Oi, Petê! Realmente, quando ocorre esse encontro, é muito bom, e quem ganha com isso é o leitor – nosso principal objetivo.Também espero que eu prepare uma tradução tua do alemão! Ficaria muito contente em fazer esse trabalho. Com certeza vamos nos divertir muito. Se precisar, estou às ordens! 😉
Um abraço!
Digo, repito, insisto (e aplaudo o ótimo texto): livro é um trabalho de equipe! Parabéns, Petê!
Alyne,
Como já trabalhamos juntos, eu posso dizer sem medo de ser feliz: formar equipe contigo foi uma delícia. Espero que possamos trabalhar juntos de novo loguinho. Beijo, beijo e obrigado pelo comentário.
A questão da revisão é especialmente complicada, como sabemos, nos textos literários. Uma ideia, que acabo de comprovar, na prática, que funciona muito bem é a do tradutor apresentar à editora seu próprio revisor. Muitos de nós são pessoas jurídicas, o que nos permitiria fornecer um pacote em que o preço da nossa lauda já englobasse a remuneração do revisor. Na minha opinião todos sairiam ganhando…
É uma boa pedida também, Regina, se pudéssemos incluir esse pacote. Assim, a conversa com o profissional de revisão seria muito mais tranquilo. Tive o prazer de participar de um “pacote” assim, pois indiquei uma tradutora para um trabalho que não conseguiria assumir e, depois que ela terminou a tradução, a editora me pediu para fazer a preparação. Eu havia acompanhado de perto a tradução, em conversas com a tradutora, e a preparação acabou ficando deliciosa, pois foram apenas retoques, todos conversados e discutidos com a amiga tradutora. Experiência fantástica. Obrigado pelo comentário e um beijo dos 4 aqui. 😉
Gostei muito do texto, Petê, pois seria tão mais prazeroso e produtivo se as editoras em geral estimulassem esse diálogo entre tradutores, preparadores e revisores, para que se mantivesse uma sintonia, dando sequência ao trabalho. Ou então permitissem essas parcerias. Eu nunca fiz preparação, mas sou revisora há muitos anos e presto serviços para editoras e agências de comunicação. E em ambos os mercados, o que vejo é uma expectativa muito grande por intervenções cada vez maiores por parte da preparação e da revisão, até mesmo desnecessárias. E pelo que vejo, isso só gera conflitos entre os profissionais que deveriam trabalhar juntos. Percebi esse clima até mesmo nos últimos congressos e simpósios dos quais participei. Mas estou gostando de ver essas editoras novas que estão surgindo com uma mentalidade diferente! A união será melhor para todos! 🙂
Tatiana,
Algumas editoras têm se esforçado para conseguir “juntar” a turma, em vez de parti-la de vez. Mas isso também vem com a maturidade do mercado e de seus profissionais. Nós, tradutores, preparadores, revisores e editores, precisamos enxergar de uma vez por todas que rivalizar com o mesmo objetivo nas mãos é o caminho do fracasso. Quando todo mundo falar a mesma língua – não digo aceitar cegamente o que o outro diz, mas discutir de forma sadia, sem achismo, sem ofensas —, tudo ficará mais tranquilo. Há posturas e posturas, como em toda a profissão, e nós escolhemos a postura da união, do auxílio mútuo.
Esse é um assunto que já passou da hora de ser discutido, não apenas em blogs, mas em eventos, dentro das editoras, em comunidades virtuais etc. Muito obrigado por seu comentário, volte mais vezes conversar com a gente. 😉