Desde muito cedo, ainda na época da escola, todo mundo ouve falar das panelas: aqueles grupinhos insondáveis que se formam, geralmente unindo os “famosos”, “os CDFs”, “as gatinhas”, “os malandros”, “os bagunceiros” e por aí vai. E muita gente fica de fora das panelas. Alguns até transitam pelas panelas, mas não se encaixam bem nem em uma, nem em outra, e fazem desse passeio algo divertido e proveitoso para si e para os outros. Essas panelinhas em geral se formam por algum tipo de afinidade e costumam causar inveja em quem não está nelas. E os invejosos tendem a criar a própria panela, que provoca a inveja em quem não está nela e botemos aí o loop infinito para eu não me repetir tanto.
Daí chegamos à faculdade. De novo, as panelas. Dos esportistas, dos baladeiros, da turma do fundão, da turma do fundão que estuda, dos botequeiros, dos religiosos, dos políticos. E a coisa repete o padrão que deveria ter sido deixado lá no fundo da gaveta do ensino médio. O ser humano, em geral, é gregário (nenhum homem é uma ilha), precisa se identificar com um grupo e, muitas vezes, acaba passando por cima de convicções para ser aceito em uma determinada panela (que às vezes nem tem a ver com ele). Parece uma grande bobagem, mas é real.
Depois, passamos à vida profissional. Dá-lhe panela. Dos puxa-sacos do chefe, dos revoltados, dos grevistas, dos acomodados, dos fofoqueiros. Já temos um jogo de panelas completo nessa altura da vida e nos identificamos com X ou Y, sempre. Porém, nesse momento, já estamos (ou deveríamos estar) bem crescidinhos para saber a importância real da panela, ou melhor, de se estar num grupo com afinidades. Dizer que não faz parte de nenhuma panela é, no mínimo, estranho, pois sempre temos um grupo de amigos que num determinado momento fala a nossa língua de tal forma que é impossível pensar em ficar longe dele. E muitas vezes ele se forma espontaneamente, sem qualquer pressão de nenhum lado, pelo simples fato de as pessoas se conhecerem melhor e perceberem que ali as ideias encontram eco, que as controvérsias são dirimidas de forma construtiva e que a ajuda surgirá quando necessário, não como troca de favores, mas como uma maneira de agradecer ao outro sua participação no grupo. E é aí, depois de todo esse blábláblá, que eu queria chegar.
Tenho lido e ouvido, ao vivo e nas redes sociais, que as pessoas têm dificuldade de crescer profissionalmente por conta das “panelas” que se formam e “não deixam que outros entrem no mercado”. É um despautério tão grande essa afirmação que me deixa apenas dois pensamentos: 1. As pessoas não têm capacidade de entrar no mercado e acabam atribuindo ao outro o seu fracasso; 2. As pessoas não veem que entrar no mercado é o de menos, o que é complicado é se manter nele. O mercado de tradução é gigantesco. Desde os mais específicos até os mais gerais, trabalho é o que não falta. O que tem faltado – e isso ouço tanto de colegas como de contratantes, empresas e editoras – é gente competente, capaz e a fim de arregaçar as mangas e trabalhar com vontade. Gente que não se esconde atrás do discurso de “preços aviltantes” para se fazer de melhor ou, o que é pior, de vítima – e depois vai pedir pro colega trabalho e recebe o que o colega pagar, sem chiar, nem titubear. Gente que entenda que uma hora tem, outra não tem, e paciência, bola pra frente, tem outros serviços a espera de alguém competente. E isso independe do grupo em que você esteja ou se você está realmente em algum. Depende exclusivamente de você. E não depende apenas de seu trabalho ser perfeito, mas de você saber lidar com o outro. Ou você pensou que, ao trabalhar como tradutor na sua batcaverna você se livraria do contato com outros seres humanos e de tudo que ele traz de ótimo e de terrível? Se pensou, melhor mudar de ramo e ir pescar no Alasca.
E agora vamos falar das maravilhosas panelas de verdade. Chegamos ao ponto em que vou fazer uma pequena ode às panelinhas e caldeirões que se formam durante a vida profissional e que são mais valiosos que muitas coisas que pensamos ser indispensáveis. Se hoje estou aqui, escrevendo esse monte de baboseira, é porque faço parte de uma panelinha, que faz parte de um ja… digo, panelão que acabou virando um imenso caldeirão. Se conheço a gente boa que trabalha comigo diariamente (sim, eu me sinto no escritório às vezes, mesmo que a conversa role toda via Skype) é porque elas viram em mim desejos, vontades, gostos e ideais afins, e eu nelas. Nem todo mundo é da panela em que estou, mas nem por isso eu descarto e ignoro quem vem até mim pedir uma ajuda, um conselho, contar uma piada ou uma fofoca. Que bobagem, gente, já crescemos, somos profissionais, adultos. Já crescemos e temos o direito de fazer o que quisermos da nossa vida. Às vezes parece que as pessoas não enxergam isso direito.
Mas tem o outro lado também: as panelas furadas. Panelas formadas para bater palmas para maluco dançar, pois o maluco é famoso, tem certa tarimba, mas perde a mão e não aceita que o contrariem. Quando contrariado, sapateia e esperneia, e daí esse tipo de panela — em geral formada com interesses escusos e interesseiros — aplaude o maluco e ataca, muitas vezes, quem está com a razão. Fica feio, fica chato e, quando a gente vê, acaba sobrando para todo mundo.
E para terminar: PARE COM A VITIMIZAÇÃO, MIGA, TÁ MICÃO. Isso mesmo. Acredito que já tenhamos falado disso aqui no Ponte de Letras, mas sempre é bom lembrar: o papel de vítima em geral é ridículo. A vítima constante acaba afastando as pessoas, e aí ela reclama que ninguém se aproxima, ai, meu Deus, ninguém me ama, e as pessoas se afastam mais. Não estou dizendo aqui para ninguém reclamar da vida e viver sorrindo para todos. Credo, eu não confio muito em quem está 100% exultante, 24 horas por dia, 7 dias na semana em euforia. Mas viver como a hiena Hardy não vai trazer serviços, muito menos gente disposta a dar aquela mão esperta quando mais você precisar. E, pior ainda, se você for uma vítima agressiva, aquela que aponta o dedo na cara de quem conseguiu dar alguns passos na carreira, atribuindo o “sucesso todo” a indicações, conchavos e outras coisinhas. Que cria um endereço eletrônico falso e manda e-mails agressivos com pseudônimo como se estivesse aos berros com a outra pessoa e como se assim fosse ganhar a briga, ter razão. Caso real esse, viu, gente, por incrível que pareça.
E se você estivesse no lugar dessa pessoa, atribuiria a que esse “sucesso todo”? Ao networking? Ao esforço próprio, às muitas noites sem dormir, ao trabalho de uma vida, aos estudos ininterruptos? Então, pessoa, temos aí um problema que vai muito além de tudo que falei aqui. E não serei eu que darei nome a esse problema. Os psicólogos são melhores que eu nesse quesito.
Um beijo e vamos trabalhar, pois o mundo gira, e a Lusitana roda.
As tais “panelas” realmente são a coisa mais normal do mundo, acredito que se as pessoas não estivessem incomodadas chamariam aquilo simplesmente de grupo de amigos. Infelizmente, alguns grupos estão melhor colocados que os outros, mas isso não significa que todo mundo na panela vai ter sucesso só porque um lá dentro teve sucesso. Mas acredito também que isso vai além da simples afinidade, tem muita gente que leva isso pra outro nível. Já vi milhares de casos de amizade x competência que atrapalha ambos os lados. Gente dando prioridade pro amigo que não é tão competente em vez de procurar um profissional melhor e mais capaz fora da panela. Até a universidade acredito que isso não faça muita diferença, na vida profissional acho meio tiro no pé. Afinidade, grupo de amigos ou panelinha não faz diferença, contanto que exista um grau de inteligência e profissionalismo aí. Eu não sei se existe mesmo essa ideia de que falta gente competente por aí, já vi muita gente competente sem conseguir um lugar ao sol e muito incompetente conseguindo tudo por conta da amizade. Há quem diga que para se entrar no mercado é necessário acima de tudo ter um QI. Aí sempre mora a dúvida, afinal como leitora tenho visto algumas atrocidades por aí que me fazem pensar no que está acontecendo. Se é por amizade ou por preço baixo mesmo. É inegável que as panelas ajudam na vida profissional, afinal um que está lá dentro acaba indicando um amigo que sabe que é competente e por aí vai, isso em qualquer profissão, e não há dúvidas que entrar no mercado está difícil, se manter nele está mais difícil ainda. Mas tudo isso me faz pensar no que está acontecendo com determinadas editoras, com a quantidade de erros e trabalho mal feito se multiplicando.
Oi, Samantha,
Já conversamos algumas vezes sobre isso, não é? Complicadíssimo, mas as coisas têm melhorado – ou ao menos parecem estar melhorando. Não que não possa haver indicações valiosas, mas que os compadrios insanos sejam menos, e o profissionalismo muito mais. 😉
“Eu nunca faria parte de um clube que me aceitasse como sócio”, disse Groucho Marx. Bem, esse era o Groucho, e só existe um do tipo. No dia a dia, é exatamente como você retratou, Petê: “panelinha” é um termo pejorativo apenas enquanto se está fora dela. No mais, é trabalhar para ser uma pessoa e um profissional melhor, pois assim não tardamos a encontrar e/ou formar o nosso próprio grupo de pessoas com interesses afins.
Lídio,
Concordo com Groucho. Mas ele também tinha lá sua panela, pois em panelinhas em geral a gente não é “aceito”, mas sim “integrado” ou “absorvido”. A não ser nas panelas malucas…
Abraço e obrigado,
Petê
Vamos comparar com as agências, que estão muito à frente em termos de profissionalismo, processos, qualidade. Você entra em contato, se elas estiverem precisando, elas mandam um teste. Você passa ou não. Talvez você passe e não receba trabalho nunca por causa da sua tarifa, ou porque eles prefiram trabalhar com um grupo pequeno. Mas é sempre uma possibilidade. Como um tradutor que não tem livros publicados consegue o primeiro teste numa editora? Provavelmente, com um conhecido que trabalhe lá. Se isso não é panelinha…
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Michel,
Obrigado pelo comentário. Talvez esta seja a sua experiência com editoras e, como toda experiência, não pode ser generalizada. Entre amigos e conhecidos que trabalham com editoras, poucos passaram pelo processo que você mencionou e, se passaram, foi porque tinham capacidade – ou ao menos pareciam tê-la – de arcar com a tradução oferecida. Por outro lado, como eu disse no texto das panelas e em outros: o problema não é entrar no mercado editorial, pois para quem deseja entrar as portas estão abertas. O problema é permanecer nele. Às vezes não se entra diretamente, eu mesmo comecei fazendo preparação de texto e revisões, e muitos tradutores começam assim, o que é uma escola e tanto. Às vezes, sua experiência com textos afins faz com que você comece de cara traduzindo. Vai depender de quem estiver avaliando seu currículo etc.
De qualquer forma, agradecemos seu comentário. Continue a acompanhar o Ponte de Letras, toda contribuição é sempre muito bem-vinda.