A Débora fez um texto há pouco tempo sobre a quase incapacidade do tradutor de “ler por ler”, pois sempre há um olhar analítico – quase um vício da profissão – com o texto traduzido e com o texto escrito em língua estrangeira. Se por um lado pensamos as decisões do colega com a nossa régua, concordando ou discordando, anotando boas decisões e aprendendo como fazer (ou não), por outro, ficamos nos perguntando como traduziríamos aquele trecho. Isso acontece também com quem traduz legendas, um tipo de tradução com especificações e características muito diversas da tradução para publicação ou mesmo da tradução mais comercial: esse profissional analisa se o que o ator enunciou foi transmitido com o sucesso e a concisão necessários para a legenda, uma abordagem completamente diferente. Mas, em qualquer caso, esse olhar ligado o tempo todo é um componente fundamental para o nosso trabalho.
Tive uma experiência incomum e deliciosa com um autor que traduzi faz um tempo, chamado Michael Kumpfmüller. Ele recriou em seu livro Die Herrlichkeit des Lebens (título provisório: O esplendor da vida, da L&PM – no prelo), em forma de romance, o último ano do escritor Franz Kafka com Dora Diamant, a única mulher com quem Kafka dividiu as agruras de uma vida a dois. Foi um livro complexo de traduzir em termos de forma (não há discurso direto, apena indireto, no livro todo) e de pesquisa histórica (muito bem feita pelo escritor), mas ao mesmo tempo fantástico. Um dos xodós que tenho na minha ainda breve carreira. Não faz muito tempo, o autor me mandou um e-mail sobre o livro, o que me causou surpresa (pois é algo incomum) e começamos uma conversa amigável, na qual expus uma dúvida estilística que tinha sobre a tradução – na verdade, uma teoria que vinha criando na minha cabeça – e recebi uma resposta que me deixou bastante feliz. Reproduzo os trechos da conversa abaixo:
Petê: Gostaria de fazer uma pergunta que possivelmente reflita uma teoria maluca que elaborei. Durante a tradução, percebi nas partes do Kafka que o texto tem várias inversões, o que exige muitas vírgulas. Onde Kafka não aparece, o texto é um pouco mais direto. Seria um recurso literário com o qual o senhor quis mostrar a tuberculose de Kafka? As vírgulas exigem uma respiração diferente, ou, melhor dizendo, um ritmo diverso de leitura. Vi algo que o senhor não fez conscientemente (ou, ao contrário, com muita consciência)? Ou é mesmo uma teoria maluca da minha parte?
O texto realmente me causou estranhamento durante a tradução e eu reproduzi o estilo mais rebuscado das partes de Kafka (ou o “Doutor”, como ele é chamado no livro), ao passo que traduzi de forma mais direta as partes em que Dora Diamant e outros personagens se sobressaíam como protagonistas. Ao fazer a última revisão do texto, me dei conta do ritmo sincopado das partes do Doutor e o texto mais fluido nas partes em que Dora ou os familiares e amigos de Kafka apareciam mais. A resposta dele foi a seguinte:
Kumpfmüller: Gosto muito de sua teoria. Obviamente não pensei em nenhum momento na respiração de Kafka, mas percebo, a partir de sua observação, que as passagens do Doutor e de Dora se diferenciam (inclusive sintaticamente), e nisso a observação está muito correta. O Doutor é – como o narrador mostra clara e literalmente – o mais difícil.
Como os críticos, os tradutores muitas vezes formulam teorias para suas decisões de tradução e para as dificuldades que encontram num texto. Para mim, estava claro que havia uma intenção quando o autor diferenciava, em nível estilístico e vocabular, partes dos textos de acordo com os personagens com maior evidência em determinadas passagens. Na época, li tudo que podia sobre o Kafka (já havia lido vários livros do autor, mas não sabia quase nada – além do que todos sabem – sobre ele. Sabiam que ele media 1,82 m, um homem alto para a época?). Isso também influenciou na minha leitura do livro que estava traduzindo e, em muitos momentos, foi de grande ajuda. Com todo o histórico do Kafka na cabeça, me pareceu mais que óbvia a decisão do escritor de retratá-lo ofegante, como o tísico que era. Viajei um bocado? Claro que sim! Mas com essa viagem respeitei o estilo que o escritor quis imprimir no texto, daquele homem difícil, misterioso, inteligente, adoentado, mas, ao mesmo tempo, vivaz e divertido. Um personagem apaixonante e muito real.
Esse contato com o autor é bastante enriquecedor. Muitos autores preferem não ter esse contato, outros (como Umberto Eco e Günther Grass, por exemplo) fazem questão de ter o tradutor bem próximo, ajudar nas escolhas, explicar partes possivelmente nebulosas. Herr Kumpfmüller, quando pedi autorização para publicar nossa conversa no blog, escreveu o seguinte sobre essa relação autor-tradutor:
Kumpfmüller: Sobre o contato entre autor e tradutor, eu já tive diversas experiências. Muitos tradutores não precisam ou não querem contato; eles não precisam do autor para o seu trabalho. Outros, sim.
Com um bom terço dos meus tradutores eu tenho ou tive contato, respondi (com muito prazer) suas perguntas e não raro aprendi algo sobre o meu livro. Gosto muito dessa conversa. Outros autores talvez não gostem. Mas eu acho que os tradutores deveriam tentar esse contato quando desejarem. Sempre há uma maneira de fazê-lo.
Por isso, voltando ao texto da Débora, pode ficar muito difícil ler um livro impunemente depois que se abraça a profissão de tradutor, pois esse olhar dificilmente se desliga para que a gente desfrute a literatura como antes. Por outro lado, desmontar as tramas e recursos que o autor usou ou entender ou vislumbrar o que um colega tradutor passou para traduzir uma passagem ou um texto é muito enriquecedor. Esse olhar melhora muito o trabalho, faz com que não caiamos na armadilha da automatização – seja o texto aparentemente fácil ou dificílimo. E treinar esse olhar sempre é uma das tarefas do tradutor.
Dissecar os textos passa a ser automático nos tradutores (e me incluo nisso), mas também corremos o risco de dissecar demais e ver coisas que não existem, ou pelo menos não existiam na cabeça do autor. Ficamos procurando pelo em ovo. No seu caso funcionou, no fim das contas, mas não pelo motivo que você tinha imaginado. Ênfase no imaginado. 😀
Esse texto foi um grande aprendizado, Val. Ao mesmo tempo em que ficarei atentíssimo (e cada vez mais atento) às peculiaridades do texto, vou me ater às peculiaridades, sem viajar tanto na maionese. Ótimo que o autor gostou da minha interpretação. 😉
Concordo inteiramente com a teoria do ‘pelo em casca de ovo’. Por isso, sempre tento nao pensar nas motivacoes do autor e, sim, exclusivamente no texto. No entanto tambem concordo que as vezes isso e quase impossivel…
Exatamente, Regina. Na hora da tradução foi o que fiz, pensei no texto, no estilo e em como ele se diferenciava de personagem para personagem. Porém, minha mente não ficou muito satisfeita e criou uma teoria com base na história do personagem, o Kafka. A teoria que muitos criam tentando imaginar o que há na cabeça de um autor quando ele escreveu a obra. O Ignácio de Loyola Brandão tem uma história ótima com o “Não verás país nenhum”. As edições mais antigas eram todas escritas com parágrafos de 5 linhas. Várias dissertações e teses foram escritas sobre isso, indo desde cálculos matemáticos à cabala. Acontece que o Ignácio, um dia e sem querer, fez uma página na qual todos os parágrafos tinham 5 linhas. Ele achou que ficou bonito e reescreveu tudo com essa “limitação” (à moda do Oulipo), sem nenhum outro pensamento além da estética da página. Pois foi o que minha mente fez, mirou no que viu, mas acertou no que não viu. 😉