por Guilherme Solari, do UOL, em São Paulo
“Ele Está de Volta” (editora Intrínseca, 304 páginas), do escritor alemão Timur Vermes, é um livro com a controversa combinação de humor e Adolf Hitler. Na história, por algum fenômeno não explicado, Hitler simplesmente “acorda” em um terreno baldio da Berlim de 2011 e, após uma confusão inicial, logo retoma o plano de reconstrução do Reich, com o apoio de uma produtora de TV, e se torna amado pela população.
O que ele não sabe é que todos acreditam que ele seja um humorista genial que simplesmente se recusa a sair do papel. As pequenas inserções “cômicas” de Hitler na TV ganham espaço, com seus discursos “führiosos” tornando-se virais no YouTube. Ao longo das páginas, o livro consegue não apenas satirizar Hitler, mas a própria sociedade atual, obcecada pela mídia e pelas celebridades.
O estilo do livro, narrado em primeira pessoa, lembra os próprios escritos de Hitler no livro “Minha Luta”, com um estilo rebuscado, pretensamente épico e dando importância a cada frase. Parece de fato o que escreveria alguém que acha que foi escolhido para salvar a Alemanha, e, no final, até mesmo o mundo.
E, no romance, Hitler tem opiniões sobre tudo. Notícias cotidianas, desenhos, esportes, humor, até sobre quais as melhores raças de cães. Escritórios modernos são comparados a linhas de montagens de fábricas de munição ou campos de concentração. Hitler admira o altruísmo “protogermânico” da Wikipédia. Define o YouTube como “um lugar onde qualquer um pode colocar filmes curtos sem que a imprensa marrom judaica lhes dê ordens sobre o que assistir”. Indignado com a qualidade dos assoalhos, ele brada para si mesmo: “no futuro haverá melhores assoalhos para o trabalhador alemão, para a família alemã!”.
Hitler ainda se mostra preocupado com a quantidade de abortos na Alemanha, mas só porque “considerando 50 por cento de meninos, perderíamos em médio prazo três divisões militares. Ou Quatro”. E até tem teorias sobre o sucesso da marca sueca de móveis Ikea: “O sueco, em seu estado preguiçoso, está o tempo todo em busca de lenha; por isso não causa espanto que daí também surja uma cadeira ou até uma mesa”.
Outra metade da graça está nos desencontros entre o que o führer acha que está fazendo (reconquistar Alemanha e Europa) e os produtores de TV encantados com seu desempenho no Ibope ao ter o seu “humor” vendido como “controverso”. Dessa forma, “Ele Está de Volta” é tanto uma sátira a Hitler como ao mundo moderno. O líder nazista acaba virando um estrangeiro nos tempos modernos, mostrando o quão estranha é a atualidade.
Rir do monstro
“Ele Está de Volta” levanta a questão: é possível rir sobre um dos maiores facínoras da história humana, responsável pela morte de milhões? O tema obviamente sempre será espinhoso, e o tipo de humor não é para todos, mas é importante lembrar que poucas críticas são mais mordazes do que a sátira. A sátira infecta como um vírus o que é satirizado e o desconstrói, de forma que fica impossível olhar novamente para o original da mesma forma de antes.
E existem alguns antecedentes no humor que lembram bastante “Ele Está de Volta”. O principal é o filme de Chaplin “O Grande Ditador”, que demoliu o estilo dos discursos nacionalistas do führer. A abordagem ao tema politicamente perigoso também traz à mente “Uma Primavera para Hitler” do filme “Os Produtores”, no qual dois picaretas tentam afundar de propósito um musical escolhendo o tema mais ofensivo possível, mas que acaba fazendo sucesso como uma comédia.
Hitler obviamente já se tornou uma figura “cômica pop”, como mostram as populares paródias do ditador no YouTube, que, alterando as legendas de um trecho do filme “A Queda”, fazem Hitler reclamar desde o fim da novela “Avenida Brasil” à alta no preço dos videogames. “Ele Está de Volta” é uma sátira mais refinada, atribui inteligência e momentos de sensatez a Hitler, em vez de uma ridicularização escrachada. Existem no livro alguns momentos em que ele até demonstra compaixão com as pessoas, e mesmo outros de triste solidão, como em um trecho da passagem do Ano-Novo.
“Ele Está de Volta” não é apenas um tipo de sátira aceitável, mas talvez seja necessária. As gerações passam, e a memória se apaga. E a melhor maneira de não esquecer os perigos do discurso totalitário e pregador do ódio é rindo dele, para não levarmos a sério os futuros candidatos a facínoras.
UOL Entretenimento: http://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/16/ele-esta-de-voltasatiriza-volta-de-hitler-na-alemanha-dos-dias-de-hoje.htm