Zero Hora Economia – Um homem que não sabe lidar com as críticas, seduzido pelo dinheiro e pela fama. Esse é o retrato de Julian Assange, criador do WikiLeaks, revelado pelo seu ex-colega Daniel Domscheit-Berg. Ele veio a Porto Alegre para falar no Fórum Internacional de Software Livre (Fisl) sobre seu novo projeto, o OpenLeaks, nesta sexta-feira, às 14h, e sábado, sobre segurança e denúncia digital, na PUCRS.
Formado em Ciências da Computação, o alemão de 33 anos conta como o WikiLeaks se tornou uma decepção e por que deixou a organização. Domscheit-Berg, que chegou a hospedar Assange em sua casa em Wiesbaden, na Alemanha, por dois meses, tem recebido cartas de um advogado com ameaças para não falar.
Mas isso está longe de calar o ativista. Prova é o livro “Os bastidores do WikiLeaks”, lançado no Brasil pela editora Campus. Confira a entrevista a seguir:
Zero Hora — Como entrou no WikiLeaks?
Daniel Domscheit-Berg — Fiquei sabendo sobre o site em setembro de 2007 por algumas pessoas. Regularmente visitava o site, pesquisei a respeito e em novembro eu passei a entrar no chat. Havia um chat em que havia apenas algumas pessoas, entre elas, Julian. Começamos a conversar e eu disse que queria ajudar.
Zero Hora — Por que o senhor saiu do WikiLeaks?
Daniel Domscheit-Berg — Essa é realmente uma história longa. Se você constrói uma organização que acaba ganhando tanto poder, tem de prestar contas. Senão, está só se contradizendo, cobrando transparência dos outros, sem oferecer você mesmo. Em primeiro lugar, em 2010, tínhamos de tomar decisões estratégicas sobre o projeto. Foi aí que minha opinião e de outros colegas divergiram da opinião de Julian. Ele ficou obcecado por esses grandes vazamentos (de informações) e se esqueceu de cultivar o WikiLeaks como um projeto, desenvolver a organização, lidar responsavelmente com todo esse material.
Zero Hora — O senhor pode exemplificar isso?
Domscheit-Berg — O material do Afeganistão é um bom exemplo. Quando publicamos esse material, Julian estava coordenando o trabalho com todos os parceiros. Essa foi a primeiro parceria entre jornais e revistas como o The New York Times, o The Guardian e a Der Spiegel. Ele ignorou completamente que ele havia feito um acordo para que os nomes de agricultores e afegãos fossem suprimidos dos arquivos. Ele disse que se elas estavam fazendo negócios com os americanos, era culpa delas e seus nomes deveriam estar lá. Vimos então que ele não se preocupava com essas pessoas. Isso foi realmente irresponsável. Algo que nunca deveria ter acontecido. E isso só aconteceu porque não tínhamos a organização adequada. Não havia regras claras, nem responsabilidades claras. Foi nessa época que ficou evidente que nós não poderíamos continuar daquele jeito. A segunda parte da explicação se deve a Julian. Ele não está disposto a ouvir as críticas de ninguém.
ZH — Como é Assange?
Domscheit-Berg — É muito inteligente, mas tem habilidades sociais precárias. Consegue ser muito charmoso e carismático, mas isso vem de sua inteligência. Quando percebe que há vantagens, é sociável. Ele não está disposto a ouvir críticas de ninguém e não sabe lidar com elas. Julian usa o medo e a raiva para manter as pessoas sob controle. E isso é como a Cientologia.
ZH — O senhor tem orgulho do WikiLeaks?
Domscheit-Berg — Eu me orgulho de publicações que fizemos e de termos despertado todo o debate sobre transparência e confidencialidade. Que hoje, estejamos aqui em um painel que discutirá transparência. Graças ao trabalho da organização, se levantou um debate mundial. A transparência é algo que tem de fazer parte do nosso futuro. O mundo se torna mais complicado e vemos que estamos perdendo o controle. As coisas estão tão complicadas que não conseguimos entender o que está acontecendo. Essa questão está relacionada à crise econômica na Grécia, Islândia e Portugal, por exemplo. Isso só acontece porque poucas pessoas podem tomar decisões de alta complexidade enquanto ninguém entende o que está acontecendo, e em algum momento isso estoura. Vemos o mesmo em relação ao meio ambiente, más condições de trabalho, exploração, pobreza… Isso só acontece porque não temos informações que nos contem como são os fatos. Tenho orgulho de termos desencadeado o debate sobre um futuro mais transparente. E temos que nos assegurar que é isso que vamos alcançar.
ZH – Quais os defeitos do WikiLeaks?
Domscheit-Berg – É muito centralizado, tenta ser muita coisa ao mesmo tempo, cobrir todos os documentos em todas as línguas, de todas as regiões do mundo, pegá-los e publicá-los. Isso é demasiado, não funciona. Foi bom para comprovar um conceito. Como um protótipo, para ver se uma ideia dá certo, e então dar um passo adiante. Mas o WikiLeaks não irá para um próximo nível. Mas a ideia é muito importante.
ZH – O que esperava ao entrar no WikiLeaks? Mudar o mundo?
Domscheit-Berg – Não, talvez. Um pouquinho. Pessoalmente, eu não esperava mudar o mundo, nisso sou diferente do Julian. O mundo tem de mudar, mas não é algo que eu posso fazer. Isso não é algo que um homem pode fazer. Queria fazer parte de algo que provoca a mudança, dando acesso às informações e contando sobre coisas importantes que as pessoas não sabiam até então. Aí, como um resultado, as pessoas vão querer mudar o mundo. Mas não quero ser a pessoa que diz como mudar. Eu sou muito otimista, e sabia que estaríamos desafiando poderes no mundo, possivelmente fazer alguma diferença. Entrei na organização porque eles já tinham feito um bom trabalho com documentos sobre a prisão de Guantánamo (em Cuba) e a corrupção no Quênia. Eram pequenas provas de que as coisas poderiam mudar. Pensei que podíamos cultivar isso. Mas me tornei parte da decepção à medida que fiz o projeto parecer maior do que realmente era. No início, levei um tempo para perceber. Quando descobri isso, eu já era porta-voz do WikiLeaks. Nos chats virtuais que fazíamos, vi que havia muitos nomes e e-mails, mas não eram todos pessoas reais. Acho que eram só nomes. Isso era feito pra parecer maior do que era. Pelo menos dois eram reais. Daniel Mathews, um americano, e Julian. Quando entrei, éramos três, e o americano saiu um mês após meu ingresso no WikiLeaks. Ele teve problemas quando o WikiLeaks foi processado pelo banco Julius Bear, em janeiro de 2008.
ZH – Como é sua relação com Assange hoje?
Domscheit-Berg – Não há relação. Ele tem um advogado que me manda cartas de vez em quando, me ameaçam para que eu não fale à imprensa. É só. Geralmente, ele fala publicamente que está me processando, mas nada disso está acontecendo. Eu só recebo cartas com ameaças. E isso provavelmente custa caro.
ZH – Como ele reagiu quando vocês disseram que estava indo embora?
Domscheit-Berg – À época, ele estava dizendo para nós sairmos, que éramos idiotas ingratos que só ficavam criticando-o e que havia “outros cem cavalos humildes em seu estábulo”, e que nós não deveríamos pensar que éramos importantes. Foi extremamente arrogante.
ZH – E quando vocês saíram, havia outras pessoas no WikiLeaks?
Domscheit-Berg – Basicamente, todos nós saímos, a não ser todos os “novos amigos” de Julian, pessoas novas que não estavam lá na construção desse projeto, que apenas vieram quando o projeto ficou famoso e agora saem e passam tempo com Julian.
ZH – Você acha que elas também podem desistir do projeto?
Domscheit-Berg – Sim. Mas há uma grande diferença agora. Eles têm de assinar uma cláusula de sigilo, não podem falar a respeito desse contrato ou do trabalho no WikiLeaks. A multa para quem infringir a regra é de 12 milhões de libras (cerca de R$ 31,2 milhões). É completamente ridículo. É isso o que está corrompendo a organização.
ZH – Ele havia proposto uma regra assim para vocês?
Domscheit-Berg – Sim, mas nós dissemos que era ridículo. Ele sempre teve essa ideia.
ZH – Conhecendo Assange, acredita que ele possa ter cometido os crimes pelos quais é acusado?
Domscheit-Berg – Não estava lá para dizer, mas não acredito que tenha sido algo forjado. Não é um complô da CIA ou algo parecido. Assange é muito chauvinista, sabe? Acho simplesmente que ele se envolveu com as mulheres erradas.
ZH – Em qual projeto o senhor trabalha agora?
Domscheit-Berg – Eu e outros colegas que trabalhavam comigo no WikiLeaks concebemos a ideia no verão de 2010, antes ainda de sair de lá. Mas quando Julian decidiu que queria fazer do jeito dele, nós deixamos de lado o projeto. Foi quando vimos que as coisas não estavam indo no rumo certo. Hoje somos cinco que trabalham nisso em tempo integral, mais seis ou sete que nos auxiliam. O foco é desenvolver tecnologia para que dados possam ser repassados de forma segura e anônima a terceiros, como ONGs ou imprensa. Por enquanto, desenvolvemos um projeto piloto com seis ONGs, para ver se funciona bem. Já estabelecemos que vamos firmar parcerias com no máximo 100 empresas. Não queremos nos tornar muito poderosos, nem ser uma solução universal, mas criar soluções diversas para as questões de transparência. Por enquanto, não posso revelar mais sobre o projeto. O OpenLeaks será oficialmente lançado ou pelo menos anunciado em agosto. Também considero que seria necessário desenvolver um projeto específico para fazer uma ferramenta específica a países em desenvolvimento, que têm características próprias.
ZH – Qual é o futuro do WikiLeaks?
Domscheit-Berg – É uma boa pergunta. O problema deles é que eles parecem se importar somente com o dinheiro e a fama. Lançaram agora uma propaganda dizendo que após Mastercard e Visa terem parado de aceitar fazer as transações de doações das pessoas via internet, o WikiLeaks perdeu 15 milhões de euros (cerca de R$ 34 milhões). É ridículo ele dizer isso. É uma mentira. De onde ele tira esses números? Da sua cabeça? Ele diz que teve despesas legais de US$ 1 milhão. Enquanto eu estava lá, o WikiLeaks nunca teve de pagar advogados. Todos trabalhavam de graça. Os únicos que ele precisa pagar são os contratados para defendê-lo na Suécia. Mas isso não é relativo ao WikiLeaks. Ele está abusando do projeto. Inflando os números para impelir as pessoas a doar. Mas isso é como um golpe. É enganar as pessoas pelo seu dinheiro. E no fim, ele paga um advogado que só me manda cartas com ameaças vazias. É para isso que serve o dinheiro doado pelas pessoas.
ZH – Muitos consideram Assange um herói. O que pensa disso?
Domscheit-Berg – Sinto pena dessas pessoas porque vão atrás de uma ilusão. Por outro lado, tenho medo porque elas não questionam as coisas, simplesmente aceitam. Tenho falado com muitos que querem acreditar em um Assange herói e qualquer afirmação no sentido contrário é blasfêmia. Isso está se tornando uma religião, e é muito perigoso.
Zero Hora Economia – http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/economia/noticia/2011/07/fama-e-dinheiro-seduziram-julian-assange-revela-ex-membro-do-wikileaks-3372839.html