No seu livro Quase a mesma coisa (Record, trad. de Eliana Aguiar), Umberto Eco discorre em 425 páginas sobre duas experiências: a de traduzir e a de ser traduzido. E mostra diversas facetas do nosso ofício, da forma minuciosa e sempre descontraída do mestre italiano. É quase um manual de teorias de tradução, mas na forma de um grande bate-papo. E na página 226 lemos o seguinte sobre negociação (um dos temas caros a Eco):
Schleiermacher (1813, tr. it.: 153) disse: “Ou o tradutor faz o máximo possível para deixar o escritor em paz e levar o leitor ao seu encontro, ou para deixar o leitor em paz e levar ao seu encontro o escritor. As duas vias são tão diversas que, tomada uma delas, deve-se percorrê-las até o fim com o maior rigor possível; da tentativa de percorrer as duas simultaneamente não se pode esperar mais que resultados extremamente incertos, com o risco de perder completamente tanto o escritor, quanto o leitor.”
O rigor de Schleiermacher (aqui concordo com Eco) é pouco viável em textos mais modernos. Mesmo quando há uma distância temporal muito grande – textos da Antiguidade, por exemplo –, tomar uma estratégia de cabo a rabo numa tradução como algo sagrado pode ser um martírio para o tradutor, talvez resulte até em ineficácia. Em tempo: não estou me referindo a escolhas tradutórias que são feitas no início de um texto e mantidas nele para sustentar a coerência e fazer uma tradução criativa, como fez Paulo Henriques Britto em sua tradução de As viagens de Gulliver (Penguin-Companhia), escolhendo apenas vocábulos do século XVIII (veja mais aqui). Refiro-me aqui ao rigor quanto ao modo de lidar com o texto: domesticá-lo, ou seja, levar o escritor ao leitor, ou estrangeirizá-lo, fazer o caminho contrário.
Em textos modernos, com os quais a maioria de nós lida, a decisão deve ser tomada caso a caso. Num texto dividido em vários momentos (cito Cloud Atlas, que será lançado no Brasil com tradução de Britto também), ou que tratem de culturas menos próximas da brasileira, essa decisão precisa ser pensada quando encontramos o problema.
No entanto, é preciso desenvolver uma estratégia a priori. É pouco aconselhável entrar num texto sem paraquedas, pois a altura dele pode ser maior do que imaginávamos. Para isso existem pesquisas: quem foi o autor? De onde veio? Qual a sua representatividade na cultura de partida? Qual a época em que se inseria, quais convicções tinha? Mesmo na literatura chamada de entretenimento, muitas dessas informações são importantes para não se cair em contradições ou tomar decisões apressadas. E, por mais difícil que seja, ler um pouco do livro antes de começar a trabalhar com ele é importante. Muitos tradutores não leem o livro antes de traduzi-lo, também não gosto de ler tudo, gosto da surpresa, do gás que as páginas me dão quando estou cansado, mas algo de importante ou interessante vai acontecer nelas. Porém, eu me familiarizo com a linguagem, com alguns personagens, começo a pesquisar alguns termos e tomo já algumas decisões, que não são pétreas, podem mudar com o avanço que faço no livro. Mas não entro desarmado numa tradução.
Traçar a estratégia é uma das partes divertidas da tradução. Ideal seria termos tempo para fazer estudos profundos da fortuna crítica do autor, da recepção dele no país de origem, do que falaram dele, do que ele produziu antes e depois. Poucos podem se dar a esse luxo. No entanto, precisamos nos municiar, criando mecanismos para lidar com obstáculos dentro do texto. E, a cada texto traduzido, esse arsenal cresce e nos dá mais segurança para a próxima empreitada. Que sempre trará novos desafios. E por isso traduzir é uma delícia.
“E, a cada texto traduzido, esse arsenal cresce e nos dá mais segurança para a próxima empreitada.” Só posso concordar! Um livro, várias experiências e nossa bagagem ficando cada vez mais interessante. Belo texto.
Obrigado, Mitsue, pelo comentário. E a gente vai colhendo coisas boas pelo caminho, e o caminho ficando cada vez mais largo… Beijão.
“É pouco aconselhável entrar num texto sem paraquedas, pois a altura dele pode ser maior do que imaginávamos.” Já tentei ler traduções em que esta altura foi totalmente ignorada. Digo “tentei” por que não deu mesmo para terminar o livro. Mas aquelas foram minorias.
Sim, traduzir é uma delícia. Ler uma tradução bem feita é edificante.
É isso, Gio. Quando a gente vê que a altura é grande demais, vale a pena repensar até onde arriscar. E quando a gente consegue superar essas distância, é recompensador. Obrigado pelo comentário.