Quando o Mateus Erthal, coordenador editorial da Aleph, entrou em contato comigo e conseguimos finalmente acertar uma agenda que fosse boa para ambos, eu não imaginava como aquele trabalho seria importante para mim. Fui me dar conta do que tinha nas mãos poucos dias depois, em um Dia da Toalha, quando vi a notícia espalhada para todos os lados: John Scalzi acabava de assinar um contrato de US$3,4 milhões com a Tor para escrever alguns livros em alguns anos.
Me lembro até hoje da cara embasbacada do Adriano Fromer, que eu conhecia apenas de “oi, tudo bem?” em outras ocasiões, quando contei a novidade em um evento da Aleph na FNAC. E da frase: “Ainda bem que compramos os direitos dele antes disso”.
Até aí, tudo bem, né? Famoso por famoso, tem um monte de porcaria que recebe milhões de adiantamento. Porém, quando traduzi a primeira frase do livro (e retraduzi algumas vezes até chegar a um tom satisfatório), me dei conta de que tinha nas mãos um trabalho instigante, para dizer o mínimo. No meu aniversário de 75 anos fiz duas coisas: visitei o túmulo da minha esposa, depois entrei para o exército. E avancei pelo mundo criado por Scalzi, sem muito pudor, nem medo, nem preconceito. Tenho que admitir que não sou aquele geek de carteirinha, aquele cara que sabe de todas as novidades da ficção científica e da fantasia, mas tenho apreço e alguma experiência de tradução com livros desses gêneros (Perry Rhodan, por exemplo). Tenho para mim que a ficção científica, por meio das naves, armas e alienígenas, esmiúça o que temos de mais humano. E Scalzi, mesmo que de um jeito ágil e divertido, faz exatamente isso, cutuca nossa humanidade neste livro através de um medo comum que compartilhamos: o de envelhecer.
Mas não para por aí, claro.
Guerra do velho é aquele tipo de livro que você começa e não quer mais parar. É o tipo de livro que faz você torcer pelos personagens: alguns para que morram logo, outros para que sobrevivam. À primeira vista, é um livro apenas divertido e rápido, com milhares de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Mas quando a gente pensa em todas as questões que ele levanta (e deixa no nosso colo, aninhadas, esperando para serem encaradas) percebe que o livro vai além da diversão. A perda, os reencontros, as amizades que se formam da maneira mais incomum possível e que perduram. As decepções e o crescimento. É quase um romance de formação, só que de alguém que já está numa idade avançada e precisa recomeçar. Reaprender a lidar consigo e com um novo mundo que se abre com todas as possibilidades em aberto. Rever prioridades e encarar o passado.
No quesito tradução, o livro não trouxe dificuldades imediatas além daquelas que toda a tradução traz, ou seja, a transposição de um elemento cultural (o livro) para outra cultura. Que diga-se de passagem, dá um trabalhão! A tomada de decisão cabe ao tradutor, mas sempre conta com a ajuda dos editores (e no caso da Aleph isso não é exceção, mas regra). Um exemplo de dificuldade foram as medidas, que sempre causam celeuma: em geral, o tradutor converte medida imperial, usada nos EUA (milhas, pés, polegadas) para a métrica (quilômetros, metros, centímetros), usada no Brasil. Porém, no caso de Guerra do velho, não pôde ser assim no início, pois o narrador, John Perry, comenta em determinado momento que terá de se acostumar com a medida métrica adotada pelas Forças Coloniais de Defesa. Ora, se ele sentiu esse estranhamento, o início não poderia ter medidas métricas, ou ficaria ainda mais confuso. Por isso, o leitor entra no livro com uma sensação esquisita — como foi esquisito para John ingressar no exército das FCD.
Outra questão que surgiu por aí foi a opção de Velharias para Old Farts. Tradução é um jogo de escolhas. Além disso, é um jogo de compreensão e negociação entre culturas. Claro que Peidos Velhos ficaria muito mais engraçado, mas vejam o que o Macmillan English Dictionary for Advanced Learners diz:
Old fart noun [C] very informal someone who is boring and old-fashioned.
Está claro que não há nenhuma referência a peido, só a velho na expressão. Alguém chato e antiquado, fora de moda. Outro tradutor decidiria de outra forma, claro. Outro tradutor poderia até usar Peido Velho para designar a turma de John Perry e assim fazer uma gracinha que não existe ali para o leitor norte-americano. O termo velharia foi o que me pareceu mais adequado naquele momento, pois o tradutor sempre deve buscar, na minha opinião, o mesmo efeito na tradução que havia no texto original.
Essas foram apenas duas questões, entre as muitas que aparecem em todo o texto traduzido. Apresentar todas elas aqui levaria alguns dias e ao menos metade do tamanho do livro. Mas com essas duas situações citadas acima acredito que já seja possível ter uma ideia do trabalho — árduo, complexo, solitário, delicioso, instrutivo, envolvente — de um tradutor. E mostrar que ele não trabalha sozinho: editores, preparadores, revisores trabalham muito para levar ao leitor a melhor obra possível. E a eles tenho que agradecer pela parceria sempre tão frutífera.
O tradutor em geral é suspeito. Para ele não há filho feio, todas as obras que traduz ele leva consigo e defende com unhas e dentes. Porém, Guerra do velho é um xodó na minha quase breve carreira e que recomendo não por ter tido a felicidade de transportá-lo de lá para cá, mas porque é um livro que me fez rir, me emocionou e me fez pensar. Para mim, não há termômetro melhor quando isso acontece.
Um abraço e não se assuste com a pele verde.
P.S. 1: Fiquem de olho, pois logo mais teremos mais Scalzi por aí.
P.S. 2: Não se preocupem, já, já vou começar a tradução de Ghost Brigades, o segundo livro da série Guerra do velho.
[Publicado originalmente aqui.]