Nem sempre ganhamos ou perdemos na vida. E isso se aplica sobremaneira à tradução. Voltei a pensar nessa questão depois de uma das aulas do curso sobre dificuldades de tradução literária, ministrado pelo prof. Maurício Santana Dias, tradutor de italiano e acadêmico. Uma participante do curso perguntou sobre trocadilhos, expressões idiomáticas e afins, ficou mais do que claro que devemos contar com um imenso jogo de compensações.
Lembro da Maria Alice Vergueiro, num dos episódios de “Tapa na Pantera”, dizendo ‘fuma aqui, toma um chá, fuma aqui, toma um chá’. Na tradução acontece um pouco dessa forma: ganha aqui, perde ali, ganha ali, perde lá, numa sucessão que é o risco assumido pelo profissional. E isso não se restringe à tradução literária, mas a todo o tipo de tradução, pois esse jogo das compensações também se aplica à tradução não literária. Quando se percebe que a tradução não é um jogo de espelhos, fugindo da ideia de palavras e frases como compartimentos estanques que recebem o conteúdo de outros compartimentos estanques, esse jogo começa a ficar mais prazeroso e interessante.
Traduzir é escolher. Escolher é enfrentar. Não é possível afastar-se dessa afirmação no mundo da tradução, ou seja, não dá para deixar as opções lá e dizer: “Oi leitor, escolha a que melhor se encaixe ao seu gosto, ideologia, modo de pensar etc.”. Numa análise de uma tradução, surgiu o comentário de que uma palavra utilizada por ele, logo no início do texto, estava carregado de significados dentro do contexto daquela obra. O tradutor, corajosamente, ultrapassou a barreira das definições dicionarizadas e inseriu naquela obra um dado que talvez nem o próprio autor teria pensado. Abuso? Não, criatividade. Pois a palavra inserida não prejudicou em nada o sentido do texto, não fugiu, digamos, de um “alcance” semântico da palavra escolhida para o autor. Ao mesmo tempo, trouxe um dado importante da obra logo no início, informação que foi mesmo pensada pelo tradutor.
E aí nos diferenciamos da máquina.
Quando fazemos nossas escolhas conscientes, descobrimos nossa voz dentro da obra ou do texto e tornamos essa voz mais alta que a voz do texto na língua fonte. Não precisamos encobri-lo por completo, mas no texto traduzido deve prevalecer a voz do tradutor. Em resumo, num conceito bastante caro nos dias de hoje: recriação.
Por isso, da próxima vez que estranhar uma tradução (e para usar um jargão, “salvo erro manifesto”), pense que o tradutor escolheu aquela frase/palavra/termo com cuidado. Ou ao menos deveria tê-lo feito. Pois é exatamente o que fazemos o tempo todo. Escolhas.