Um segredinho sobre tradução

Não sei se vou chover no molhado, mas vou contar para vocês alguns segredinhos sobre a tradução. Para isso, não vou usar nenhuma teoria de forma explícita, mas elas estarão por aí, pairando sobre as minha palavras torpes.

Aviso: este texto tem ironia, tem brincadeira, tem seriedade e é bastante vapt-vupt. Mas o assunto rende até simpósio. Mas vamos ficar no campo da leveza, que é mais interessante por ora.

Comecemos por uma afirmação muito simples: toda tradução é uma reescritura. Como assim, Petê? É muito fácil de entender, vamos lá:

  1. O autor escrever um livro em inglês. Um livro que está inserido dentro do conjunto de uma obra, de um estilo, uma escola literária, uma época, uma língua, uma cultura. Até aí, estamos de acordo? Então:
  2. O tradutor lê este livro em inglês, que é como uma matrióshka, aquelas bonequinhas russas: dentro do conjunto da obra, estilo, escola etc. e o recria/reescreve, da melhor forma possível, em português, que é uma língua que está dentro de uma cultura que contém escolas literárias, épocas, estilos, conjuntos de obras e livros próprios.
  3. Daí se origina uma OBRA DERIVADA do original (segundo a Lei de Direitos Autorais brasileira), e não uma obra de coautoria (que se escreve ao mesmo tempo) nem nada disso.

Ou seja, o que lemos em uma tradução é uma leitura do tradutor que foi incumbido de trasladar a obra do idioma de partida (o original) para o idioma de chegada (a tradução). Sim, uma leitura com toda a carga histórica, cultural, ideológica, política, socioeconômica, sexual, sensorial, literária, técnico-científica, religiosa etc. etc. e tal que o tradutor carrega desde a mais tenra infância até o momento em que depara um texto para traduzir.

Por mais paradoxal que seja

Obviamente, o tradutor não deve inventar nada. Ele simplesmente tem de desmontar o que havia no original e remontar no português, tomando o cuidado para que essa remontagem seja, por um lado, fiel às intenções do autor e, por outro lado, seja totalmente legível para o leitor em português. Paulo Henriques Britto, de quem sempre falo em várias postagens, diz o seguinte em seu livro A tradução literária (Civilização Brasileira, 2012):

Eis um exemplo: não sei alemão, e sou um leitor apaixonado de Kafka. Assim, quando leio uma tradução de Kafka em português, quero vivenciar algo semelhante à experiência que tem um leitor de fala alemã quando lê Kafka no original. Anima-me saber que Modesto Carone, o tradutor brasileiro de Kafka, conhece bem o alemão e é um estudioso das obras desse autor; que ele tem consciência de que Kafka escreve seus textos excepcionalmente poéticos num alemão frio e burocrático, e que ele tenta reproduzir esse efeito no português. (grifo meu) Se eu soubesse que Carone está interessado em afirmar sua autoria das traduções que publica, e por isso utiliza um português claramente diferente do alemão de Kafka, inserindo nelas coloquialismos brasileiros e referências ao Brasil de agora (…) eu simplesmente recorreria a outras traduções de Kafka que não as suas. (p. 27)

Como em qualquer obra de ficção — qualquer uma — lançamos mão aqui de um salto de fé ou da suspensão da realidade: acreditamos que o tradutor, imbuído da alma do autor, reescreveu o livro em português como se o próprio autor o fizesse. O que é uma tremenda balela, pois o autor, depois que pôs o ponto final em seu livro, escreveria o mesmo livro de uma forma totalmente diferente. Imagine o tradutor — esse ser estranho que de algum jeito recebe a missão de se apropriar da obra alheia e de recriá-la em outro idioma — quando encontra o livro, às vezes depois de alguns anos, outras depois de séculos, e é incumbido de sua tradução? Não que as traduções que se valem de maneiras menos ortodoxas de tradução sejam menos válidas, mas falando comercialmente (ou seja, quando é uma tradução para o grande público), temos de nos ater ao que o autor quis dizer — ou ao que acreditamos, estudamos, apuramos da melhor forma possível que ele quis dizer — , e não temos de querer ser autores, apesar de sermos os autores da obra derivada.

Por mais paradoxal que seja a nossa profissão, é sim uma profissão apaixonante. Por menos reconhecida que seja, é sim aquela que me preenche, me invade e me toma. Por mais que seja uma leitura, a minha leitura, a leitura alheia, ainda é a melhor maneira de se chegar a textos que, de outra forma, nós nem sequer teríamos a mais pálida ideia de sua existência. Pois, como disse Saramago:

Os escritores fazem as literaturas nacionais e os tradutores fazem a literatura universal.

E vamos continuar conversando. Qual o segredinho sobre a tradução que vocês gostariam de falar?

Originalmente publicado aqui.

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