Meu encontro com Zoe

Quando recebi o romance Nuvens de ketchup, de Annabel Pitcher, para traduzir, imediatamente deixei que o nome fofo me enganasse. Fiquei feliz, como sempre, comecei a leitura para reconhecer o terreno a que estava chegando e me deparei com estas primeiras frases:

“Ignore a mancha vermelha no canto superior esquerdo. É geleia, não sangue. Mas acho que não preciso explicar a diferença para o senhor. Não foi geleia da sua mulher que a polícia encontrou nos seus sapatos.”

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Encarei a mancha vermelha no alto da página, já prevendo uma voz muito forte e irônica naquele livro. Estava diante de um romance epistolar, um gênero muito conhecido no passado (um dos mais famosos, Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe), mas que hoje não se vê com muita frequência, menos ainda em romances infantojuvenis: cartas que contam uma história, montam cenários, trazem discussões e diálogos, enfim, criam o romance a partir das impressões dos remetentes. Não é fácil escrever um romance assim. Traduzir também não foi das tarefas mais tranquilas.

Zoe, a protagonista da história, cometeu um grande erro no passado e não aguenta mais escondê-lo de tudo e todos. Numa pesquisa rápida na internet, ela descobre que pode se comunicar com criminosos norte-americanos que estão no corredor da morte, em geral abandonados por família e amigos, como ajuda humanitária àqueles que ficaram sozinhos para pagar por seus erros. E resolve escrever cartas, contando sua história – o segredo que tanto a entristece – ao sr. Stuart Harris.

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Aos poucos, Zoe começa a abrir sua vida ao sr. Harris, dando detalhes da conturbada história do ano que passou desde que cometeu o “erro”, ficando cada vez mais à vontade para tratá-lo como um verdadeiro confidente. Mas as cartas não tratam apenas do passado: o presente de Zoe ainda não está totalmente nos eixos. Sua intenção é totalmente egoísta – Zoe é um nome fictício, como o endereço e todos os outros nomes em suas cartas –, pois ela não quer saber o que Stuart acha de tudo aquilo, mas precisa contar a alguém, desabafar, botar para fora a angústia por seu ato tão tenebroso. Zoe mostra que não é nada boba quando, no início do romance, revela:

“Mesmo se quisesse escrever de volta, o endereço no início desta carta é falso. […] então, sr. Harris, não pense que poderá fugir da prisão e aparecer do nada na minha porta depois de pegar uma carona do Texas procurando por uma garota chamada… bem, vamos fingir que meu nome é Zoe.”

Durante a tradução, não consegui evitar e imaginei várias respostas do preso Stu à inglesa Zoe, uma garota no interior do Reino Unido com uma mancha em seu passado. Mancha que já aparece no início do livro, reproduzida na linda edição da Rocco. Uma mancha de geleia, que poderia muito bem ser de sangue, revela muito mais de Zoe do que ela pode imaginar. De linguagem rápida, atual e contundente, Nuvens de ketchup – vencedor dos prêmios Edgar Alan Poe e Waterstone – é um livro que surpreende a cada carta, do início ao fim. Assim, Annabel Pitcher conquistou minha admiração.

Publicado originalmente no blog da Editora Rocco.

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