A perna maior que o passo

Um dos primeiros posts da Carol (Copi malquisto, sucesso de público e crítica aqui no Ponte de Letras) contava um pouco a experiência dela com preparações (ou copidesques) que davam um trabalho dos diabos e acabavam com a paciência do preparador que, sendo remunerado por um trabalho, acabava fazendo outro mais complexo que é o de retradução. Num momento do texto, tentando entender os porquês desse fenômeno nada incomum no mundo editorial, ela levanta duas hipóteses:

A menos que aja de má-fé e jogue o texto num tradutor automático da vida, o tradutor que traduz mal:

1)   não tem jeito para a coisa e ainda não percebeu;

2)   ainda é inexperiente e precisa rever muitas vezes os próprios erros e tentar aprender com os acertos dos outros.

Revisitando os textos do blog e repensando experiências (minhas e de outros colegas que já as compartilharam), pensei que a Carol não aventou uma terceira hipótese, talvez por ser uma menina boa de coração. Essa hipótese seria a falta de humildade de quem recebe uma proposta de tradução difícil, uma situação que independe de experiência ou de jeito para a coisa. E é um problema tão comum, comprovado pela quantidade de textos preparados que precisam ser quase retraduzidos. O inferno na vida de qualquer revisor e/ou editor.

Às vezes, o tradutor inexperiente vê numa proposta a oportunidade perfeita para dar um salto espetacular na carreira, incluindo em seu currículo um livro difícil, de peso. A tentação é grande, pois aquele livro pode ser a chave que abrirá de uma vez por todas as portas do mundo editorial. Sem pensar na modéstia, ele se joga de cabeça naquele périplo e, já nas primeiras páginas, vê que não vai dar conta, não do jeito que o editor espera. E aí é tarde demais, pois a incumbência foi passada e, claro, quem aceitou esse pepino vai tentar descascá-lo da melhor maneira possível.

É um risco. Grande demais. E pode afundar um barco inteiro.

Isso não acontece apenas em trabalhos editoriais. Já falei aqui da velha história do “peguei um texto jurídico contencioso, alguém tem um glossário aí?” A pessoa recebe um e-mail da agência, valores, tema e aceita um trabalho do qual não tem a mínima noção, mas pensa que um glossário resolverá a vida. Não é assim que a banda toca.

Por isso devemos analisar bem o texto que recebemos para traduzir. De preferência, ele deve ser um passo menor que a nossa perna. Não significa que devemos recusar todos os desafios, só com ele que crescemos e aparecemos. Um desafio, a cabeça quebrando (como a minha pouco tempo atrás, quando eu estava traduzindo um texto bastante difícil, mas administrável) sempre é saudável, inclusive para mostrar nossos pontos a melhorar e nossas capacidades. Mas devemos ter a humildade para reconhecer que aquele texto é areia demais para o caminhão e que talvez não bastem todas as viagens que estejamos dispostos a dar para concluí-lo. O trabalho de humildade aqui também é um trabalho de empatia: pense que, se você for muito aquém na sua tradução, o próximo indivíduo do processo, o preparador, vai sofrer demais, se desgastar demais. E, talvez, tenha mais experiência e seja contratado para retraduzir o que você fez.

E aí já era. Perdeu o cliente. No mínimo, vai decepcioná-lo muito.

Para quem pensa que essa é uma situação rara, é mais comum do que a gente imagina. Assim, da próxima vez que receber aquele texto escabroso, mas que desperta todos os afãs do desafio e do estrelato, pense de novo: eu tenho cacife para enfrentar essa bomba neste momento? Ser honesto consigo e com seu editor sempre vai contar pontos na próxima empreitada. Pode apostar.

6 comentários A perna maior que o passo

  1. Val Ivonica 11 de maio de 2015 @ 12:10

    Dia desses recebi e-mail de um cliente com uma série de recomendações que eles acharam por bem mandar pra todos os tradutores da agência (achei a lista tão pertinente que virou post no blog). A primeiríssima recomendação era justamente “na dúvida, recuse”. Por aí dá pra ver que esse é um problema muitíssimo comum, mesmo fora do meio editorial.

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    1. Petê Rissatti 12 de maio de 2015 @ 17:10

      Adoro esses encontros de tradução editorial e não editorial, quantas coisas valem para os dois “mundos” e como inclusive os problemas se repetem. Vindo da técnica, sei como é complicado esse tipo de coisa e a agência fez muito bem em dar essa dica: na dúvida, diga não. Ser honesto, acima de tudo. Beijo, Val, obrigado pelo comentário.

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  2. Isa 12 de maio de 2015 @ 13:11

    Isso é um problema recorrente mesmo. O pior é quando a editora continua chamando o mesmo tradutor e o revisor/preparador tem o mesmo problema, de novo e de novo… tendo muito mais trabalho do que deveria.

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    1. Petê Rissatti 12 de maio de 2015 @ 17:12

      Oi, Isa,

      Daí entramos no terreno do “insondável”: por que um tradutor que dá trabalho continua com trabalho? De qualquer forma, ser profissional apenas faz com que a gente avance, enquanto quem acha que tem o seu garantido seja lá por qual motivo pode se surpreender com a falta de profissionalismo.
      Por isso, avancemos!

      Um abraço do Petê

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  3. Daniela Reis 16 de maio de 2015 @ 13:04

    Excelente ponto de vista! Só que tenho uma dúvida de tradutora iniciante: isso vale para agências? Meu caso é: fiz um teste para uma agência, passei e disse quais são as minhas áreas de especialidade. A agência, mesmo assim, passou uns textos de outras áreas, das quais não entendo bem. E aí, o que fazer? Foi o primeiro trabalho que eles me passaram e, com medo de me “queimar” logo de cara, topei. Estou certa ou errada?
    Um abraço!

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    1. Petê Rissatti 17 de maio de 2015 @ 09:25

      Oi, Daniela,

      Em primeiro lugar, obrigado pelo comentário. São os comentários dos leitores que enriquecem esse grande bate-papo sobre tradução que é o Ponte de Letras.
      E isso também vale para agências, sim, mas no início da carreira a gente acaba “pegando de tudo”. Falei disso em outro post (clique aqui), quando comentei sobre glossários e afins. No mais, como disse a Val Ivonica aqui nos comentários: “Na dúvida, recuse”. E justifique sua recusa com um argumento muito simples: há gente por aí que é especialista nisso, eu sou especialista naquilo, ficarei muito feliz em aceitar quando tiverem textos das minhas especialidades e não quero decepcioná-los com textos que não são. Tem gente que entende e aprecia essa postura, creio que a maioria das pessoas. Mas no primeiro trabalho, as pessoas costumam mesmo olhar com maus olhos uma recusa. Porém, da próxima vez, talvez você consiga deixar claro o que pode e o que não pode fazer. Grande abraço!

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