Os últimos e felizes dias de Franz Kafka…

Jornalista alemão retrata o fim da vida do escritor tcheco baseando-se em diários e documentos de amigos

por Graça Magalhães-Ruether – 5.7.2014

BERLIM – Esqueça a imagem do escritor tcheco Franz Kafka — mas que, como muitos judeus do leste europeu, tinha o alemão como língua materna —, como um homem introvertido, de espírito angustiado, que renunciava à vida em prol da literatura. Morto há 90 anos em um sanatório austrícaco, o autor de “A metamorfose” e “O processo” ganha um retrato bem mais colorido e ensolarado do que as suas obras no romance biográfico “Die Herrlichkeit des Lebens” (“A grandeza da vida”, em tradução livre), do escritor e jornalista alemão Michael Kumpfmüller.

O livro, que sairá no Brasil no primeiro semestre de 2015 pela editora L&PM (com tradução de Petê Rissatti), conta a história dos últimos onze meses da vida de Kafka, período em que viveu com Dora Diamant, em Berlim, e no balneário Graal Müritz, no Mar Báltico. Apesar da doença que já o debilitava, da escassez de dinheiro e da hiperinflação que atingia a Alemanha na virada dos anos 1923 e 1924, o escritor fazia planos de emigrar com Dora para a Palestina e abrir um restaurante. Segundo Kumpfmüller, ele era extrovertido, comunicativo, brincalhão e otimista. Esta imagem é conhecida dos estudiosos — está escancarada no próprio diário do escritor tcheco — e já foi dissecada por alguns biógrafos, como o britânico James Hawes no livro “Excavating Kafka”, de 2008. Mesmo assim, são poucos os que a abordam de forma aberta e clara.

— O livro tenta corrigir o mito criado de que Kafka era um infeliz que renunciava à vida para criar a sua obra. Kafka era comunicativo, social e gostava de dar risadas — afirma o autor.

Para escrever a história, o jornalista pesquisou no Arquivo Marbach de Literatura Alemã, em Berlim, e no balneário onde Dora e Kafka se conheceram, além de documentos e comentários escritos por pessoas que conviveram com o casal. Outra fonte importante foi o diário que Dora, uma judia polonesa muito mais jovem do que o escritor, escreveu após a sua morte. Em certa a passagem, ela o descreve: “Kafka estava sempre animado. Ele gostava de fazer brincadeiras, era o brincalhão nato, sempre disposto a contar uma piada. Eu não acho que a sua principal característica fosse a de um homem deprimido”.

Apesar de amar Praga, o escritor sofria com o conflito entre a cidade, o judaísmo e a sua identidade em parte alemã. Morar em Berlim então era um sonho antigo, uma empreitada interrompida em 1914, pouco antes do início da Primeira Guerra Mundial. Em menos de um ano na capital alemã, o casal Kafka e Dora realizou projetos de uma vida inteira, defende Kumpfmüller.

Contudo, a produção de Kafka dessa época desapareceu. Em 1933, após a morte do autor (em 3 de junho de 1924, vitimado pela tuberculose, pouco antes de completar 41 anos), e logo após o putsch de Hitler, a Gestapo confiscou os manuscritos guardados no apartamento de Dora, que tinha se casado com um comunista. Três anos depois, ela emigrou com o marido para a União Soviética, mudando-se para a Inglaterra em 1939, no início da Segunda Guerra Mundial.

Mesmo sem esses documentos, o jornalista acredita que a felicidade desses dias influenciou a escrita de Kafka. Seu objetivo era mostrar um autor muito diferente daquele divulgado por Max Brod, seu melhor amigo e responsável pela publicação póstuma de suas obras. Outro depoimento de Dora Diamant, presente no livro, mostra um Kafka paternal e que gostava muito de crianças: “Quando vivíamos em Berlim, Kafka ia frequentemente passear no Parque de Steglitz. Muitas vezes eu ia com ele. Uma vez encontramos uma menina pequena que chorava e parecia estar desesperada. Franz perguntou a ela o motivo da sua aflição e ela contou que tinha perdido a sua boneca. Em pouco tempo, ele inventou uma história para explicar o desaparecimento da boneca. ‘A tua boneca foi apenas fazer uma viagem, eu sei porque ela me escreveu uma carta’”.

Kumpfmüller conta o resto da história. No dia seguinte, o escritor levou a carta que tinha escrito no nome da boneca desaparecida. Depois escreveu uma outra carta, explicando que a menina não precisava se preocupar. “Também uma boneca tem de vez em quando vontade de viajar, mas o mais tardar no Natal eu estarei de volta”, dizia em um trecho.

Para Hans Gerd Koch, responsável pela monumental edição crítica das obras completas de Kafka publicada pela editora alemã S. Fischer — e cujo último volume, lançado recentemente, é o das cartas do período entre 1918 a 1920, incluindo as famosas “Cartas ao pai” (já editadas no Brasil em livro pela L&PM) —, em todos os seus textos, sejam romances, novelas e até nas mais simples cartas, ele escreveu grande literatura.

— A vida, a existência, estes eram os seus temas mais importantes, que ele sentia necessidade de abordar nas cartas e nos romances — diz Koch, professor de literatura da Universidade de Wuppertal.

O Globo – Cultura: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/os-ultimos-felizes-dias-de-franz-kafka-entre-berlim-a-praia-no-mar-baltico-13140498#ixzz36o53YEV8

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