A tradução como ela é – e o que ela não é

Tem muita gente que ainda pensa assim: o cara aprende uma língua, faz um curso até o nível “avançado”, fala perfeitamente, se comunica, vira até professor do idioma. Daí pega um texto, vai para a frente de um computador, abre o Word ou uma ferramenta de auxílio à tradução e começa a traduzir, pegando as palavras de um idioma e passando para o outro. Ou seja, copia um texto de um lado para o outro, mas o que estava em inglês, digamos, ele põe em português. E pronto.

Fácil, não é mesmo?

Não mesmo.

Neste post, comentarei um pouco sobre o pensamento de tradução como cópia e sua verdadeira face: um trabalho que envolve muito mais do que simples digitação e olhadas no dicionário. Pesquisar, ter precisão, esmiuçar sentidos e muitas outras coisas que não caberiam em um só artigo.

Li nos últimos tempos dois artigos muito interessantes que tratam deste tema: um em português e outro em alemão (clique nos links para vê-los). O texto de Eduardo Ferreira, que escreve a seção “Translatio” no jornal literário Rascunho, comenta sobre tradução como cópia e a arte como cópia, utilizando a arte de Vik Muniz como parâmetro. O que Vik Muniz faz com materiais recicláveis, montando imagens de obras de arte conhecidas com lixo e resíduos, é considerado arte, e não cópia. No texto, Eduardo comenta que o mesmo se dá com a tradução: muitos pensam que a trasladação de um texto é uma exercício automático, sem maiores considerações. Porém, o ofício mostra que há uma dose imensa de transformação quando há a passagem da língua-fonte para a língua-alvo, que as reflexões quando de uma decisão são muitas, das mais diversas, desde as gramaticais, passando pelas rítmicas e, sem se limitar a elas, chegando às semânticas. É um caminhão de coisas.

Já o texto do jornal Die Zeit, de Gideon Lewis-Kraus, escritor de Nova Jérsei que viveu em Berlim e fala alemão, comenta sua experiência como autor que tem contato direto com seu tradutor, o também escritor Thomas Pletzinger. E como essa relação pode chegar às raias do amor e ódio quando o tradutor precisa refazer o percurso que o autor fez para chegar àquela construção, frase, termo. O texto acaba mostrando como é complexa a relação que o tradutor desenvolve com o autor do texto e, neste caso, vice-versa.

Numa conversa que tive com Andréa del Fuego, autora do premiado Os Malaquias, que foi traduzido para o alemão por Marianne Gareis, ela comentou que teve medo quando a tradutora a bombardeou de perguntas, querendo esmiuçar metáforas que ela usara no livro; medo de que a tradutora fosse tirar o aspecto poético o texto. A tradutora a acalmou, dizendo que precisava apenas entender como ela havia chegado a tal imagem, a tal construção. E, pela crítica excelente que vem recebendo lá fora, esse diálogo deu muito certo.

E quando não há a oportunidade de trocar figurinhas com o autor? Quando ele é inacessível por algum motivo ou já faleceu? Daí temos de contar com a leitura aprofundada e minuciosa, algum conhecimento sobre ele (quanto mais, melhor), muitas pesquisa e também com a intuição, obviamente muito bem alimentada por treino, familiaridade com a cultura, a época, a situação (ainda dá para chamar de intuição?). Como eu disse lá em cima, é um caminhão de coisas e, para cumprirmos nossa tarefa a contento, ele precisa estar cheio com o máximo de informações, experiências e conhecimentos que pudermos.

P.S.: Agradeço a Karla Lima e a Elisabete Köninger pela indicação dos dois textos, respectivamente.

6 comentários A tradução como ela é – e o que ela não é

  1. Monique 10 de março de 2014 @ 13:39

    Petê, excelente, como sempre. Acabei de pegar uma revisão assim, de alguém que tem conhecimento da língua no dia a dia, mas que na hora de traduzir, fez tudo o que quis, menos traduzir. Sem vivência de texto literário, sem vivência do processo tradutório. O resultado foi um texto até engraçadinho se você não conhece o original. Mas na hora do cotejo, na hora de revisar, as primeiras 20 páginas viraram um carnaval de linhas vermelhas e azuis. Foi uma tradução de paráfrase. Cheguei na editora e bati o martelo: isso aqui vai ter que ser retraduzido. Eles ficaram horrorizados e eu também. Agora é esperar p/ ver…

    Um beijo!

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    1. Petê Rissatti. 10 de março de 2014 @ 14:04

      Oi, Monique,

      Obrigado pelo comentário. Infelizmente é bastante comum esse tipo de coisa. E a gente precisa ficar muito atento para não aceitar uma coisa, sendo que ela é totalmente outra.

      Beijo

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  2. Christiane Neusser Sichinel 10 de março de 2014 @ 14:17

    Obrigada pelas ótimas dicas de sempre, Petê! (Já fico no aguardo a cada segunda…hehehehe) Especialmente o texto de Gideon Lewis-Kraus é uma delícia, vou procurar ler mais dele! Abraços a vocês!

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    1. Petê Rissatti. 10 de março de 2014 @ 14:31

      Vielen Dank, Christiane!

      Que ótimo que está acompanhando, ficamos todos muito felizes. Você já se inscreveu para receber aviso de publicação do blog? É só clicar ali em “Saiba das novidades” que elas vão para o seu e-mail assim que um post entra no ar. 😉
      Quero fazer uma série com esse nome, “A tradução como ela é”. Já tenho outro texto pronto, sempre quando tiver esses insights malucos eu vou escrever. Aguarde.

      Beijão e até a próxima.

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  3. Beatriz Schmitz Fernandes 11 de março de 2014 @ 11:54

    Ótimo artigo, Petê. Tiraste as palavras da minha boca. Eu que estou no início do trabalho de tradução, vejo como é exaustivo o trabalho de pesquisa.

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    1. Petê Rissatti. 11 de março de 2014 @ 12:48

      Olá, Beatriz,

      Obrigado pelo comentário. E não apenas o trabalho de pesquisa, mas toda a preparação para se alcançar um texto mais fluido, com muitas leituras, inclusive de outros tradutores e de autores da língua-alvo, ter interesse por diversas áreas, com estudos da gramática das duas línguas e consultas sempre que houver dúvidas etc. Mas no fim das contas, tudo isso vale muito a pena.

      Abraço.

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