As dores e delícias da não ficção

Existe uma condição básica para quem traduz literatura que é a de ter uma certa “mão de escritor”, ou seja, ter um jogo de cintura, um molejo com a língua e seus variados recursos que imprimem no texto a beleza que vem do original. Então, supõe-se que a tradução de um texto sem as tintas e os nuances da literatura precisa apenas de um bom português e da exatidão vocabular para funcionar, e que os condicionantes culturais têm um efeito menos impactante sobre a transposição do texto de partida para o texto de chegada. Essa suposição errônea é atribuída tanto à tradução técnica* quanto à tradução de obras de não ficção. Dedico este texto à última, mas basearei muitos dos pontos que levantarei brevemente aqui também na experiência com tradução técnica.

Para quem acha que a tradução de não ficção deve em complicação frente à tradução de literatura, engana-se. As especificidades são diferentes, mas o processo de construção de texto é muito similar e tem um agravante: a precisão vocabular é condição intrínseca da tradução de não ficção. Enquanto na tradução literária existe um leque de opções para uma mesma palavra, que dependerá obviamente do registro, da época e do efeito que se pretende causar no leitor, na tradução de não ficção a busca pela mot just, a palavra exata, é constante. Não quer dizer que não haja escolhas ou margens interpretativas, disso o tradutor não escapará em momento algum. Porém, são menores e devem ser respeitadas.

Também temos a questão do conhecimento do assunto e da pesquisa. Muitas vezes, existem tradutores que são especialistas num determinado assunto e que acabam assumindo muitas traduções daquela área. Porém, há também áreas nas quais há excelentes especialistas, mas que não são tradutores, não têm conhecimento da língua de partida suficiente para traduzir, mas conhecem o bastante para fazer a revisão técnica do livro. Nesse momento, entra em cena o tradutor que não é especialista num determinado assunto, mas tem um texto bom, um conhecimento profundo da língua fonte e da língua alvo e um certo trânsito na área. Mas isso não basta: ele precisa também ter o gosto pela pesquisa, que deveria ser (nem sempre o é) outra condição sine qua non para um tradutor.

E cada autor de não ficção tem uma voz, como têm os autores de ficção. Traduzi há pouco três livros de não ficção quase na sequência, de autores diferentes e assuntos próximos, mas diversos: negócios e oportunidades, empreendedorismo e economia para leigos. O tom de cada autor era muito diferente, as pesquisas feitas, a abordagem tradutória, tudo mudou de um autor para outro. Em um deles, tive de pesquisar desde o histórico de uma famosa banda de rock até o esquema de operação do Serviço Aéreo Especial Britânico (SAS) na execução do cerco à embaixada do Irã nos anos de 1980. Isso mostra até onde precisamos ir, às vezes numa mesma obra, em termos de pesquisa.

Resumindo: a capacidade e a disposição de pesquisa valem tanto quanto um texto excelente. Porém, um texto de não ficção não dispensa uma boa dose de criatividade, inventividade para enfrentar os trocadilhos, os jogos de palavra e os condicionantes culturais de uma tradução. A ajuda de um profissional da área é sempre bem-vinda, mas só isso não basta para se produzir um bom texto.

* Para mais informações sobre o assunto: AZENHA Jr., João. Tradução técnica e condicionante culturais: primeiros passos para um estudo integrado. São Paulo: Humanitas, 1999.

4 comentários As dores e delícias da não ficção

  1. analuciar 25 de novembro de 2013 @ 10:41

    Muito interessante a abordagem, Petê. Traduzo ficção, mas sempre que leio um livro de não ficção me pego pensando exatamente no que você aborda: como é importante o tradutor encontrar a palavra exata – e como isso deve ser difícil em certos casos. Um abraço.

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    1. Petê Rissatti 25 de novembro de 2013 @ 10:48

      Ana, muito obrigado pelo comentário. Nos meus primeiros livros, de não ficção, eu imaginava o contrário: como seria ter um livro de ficção nas mãos, quais seriam as dificuldades, os problemas etc. Agora que traduzo ficção também e tenho a visão do outro lado do balcão, posso dizer que são equivalentes em dificuldade, mas as necessidades e a abordagem muitas vezes são outras. E posso dizer que aprendo aos montes com livros de não ficção…

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  2. Luis Fragoso 25 de novembro de 2013 @ 19:12

    Petê, ótimo texto, com o qual me identifico muito, já que não-ficção é minha praia (tirante duas exceções, até o momento). Apenas como endosso à afirmação que abre o segundo parágrafo de seu texto, trago à tona um exemplo: os guias de viagem. Tentando evitar a repetição “ad nauseam” na descrição dos hotéis, restaurantes e pontos turísticos, os autores compensam a adjetivação simples inserindo metáforas, símiles, expressões idiomáticas e outros malabarismos linguísticos. Faz todo sentido: sem eles, a leitura dos guias talvez ficasse maçante. Cabe a nós entrar neste jogo dos autores, transpondo a brincadeira para nosso idioma. A diversão do tradutor é garantida. Abraços.

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    1. Petê Rissatti 25 de novembro de 2013 @ 20:33

      Luis,

      Que ótimo ter você por aqui. E, como você mesmo disse, nossa diversão sempre está garantida.

      Grande abraço!

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